Palmada não pode. Tiros, sim
Malu Fontes
Nada mais inverossímil que o comportamento dos parlamentares brasileiros, de todos os níveis: dos vereadores das câmaras mais paroquiais do Brasil profundo aos nobres e respeitáveis senadores da República. Embora o tema televisivo da semana tenha sido o sorriso amarelecido prematuramente do presidente Lula logo após o que se considerava como tendo sido o maior feito da diplomacia nacional na história deste país, a intermediação do tal acordo com o Irã, eis que entra na cena política televisiva um parlapatão com mandato, destes que nem Dias Gomes nem Aguinaldo Silva conseguiriam construir ficcionalmente com tamanha falha de caráter.
O personagem político brasileiro do telejornalismo na semana não foi o presidente Lula, frustrado em seu papel de mediador da paz em turnê pelo mundo, tampouco os pré-candidatos em romaria país adentro em busca de votos, mas o senador paraibano, do DEM, Efraim Morais. Não bastassem todas as regalarias e vantagens financeiras inerentes ao cargo e mandato de senador, Morais viu que poderia ser mais criativo e embolsar mais algum. Sacou os nomes de duas moças pobres de Brasília, tomou-lhes endereços e procurações assinadas. Tudo a fim de dar-lhes uma ajuda de custo educacional, no valor de R$ 100 mensais. Meses e meses se passam, uma das moças arruma um emprego, vai abrir uma conta e, só assim, descobre que ela e a irmã são funcionárias do Senado há tempos, lotadas no gabinete do Senador do DEM, cada uma com um salário de R$ 4 mil, religiosamente pago todos os meses (e sacado, embora nunca por elas) há mais de um ano.
NECESSITADO - Ingênuo o eleitor que suponha que a falha de caráter dos ilustres senadores da República esbarra na nomeação de funcionários fantasmas que sequer sabem que são empregados públicos, com cargos de confiança e salários invejáveis, e, no fim do mês, embolsam ilicitamente milhares de reais. O senador paraibano foi mais longe. No final de 2009, de posse dos rendimentos das funcionárias que foram suas nem nunca terem sido, fez minuciosamente a declaração do Imposto de Renda de ambas, enviou para a Receita e, de posse do recibo, foi ao Banco do Brasil e, acreditem, solicitou a antecipação da devolução do IR. Em tempo de campanha, compreende-se: o senador deve estar necessitado.
Ao mesmo tempo, bem perto dali, do Senado Federal, a Câmara aprovou um projeto de lei mimoso, desses voltados para atender às criancinhas desamparadas desse país que têm o luxo de terem casa, família e um pai e uma mãe que, um dia ou outro, pensando educá-las, posam cair na tentação de dar-lhes uma palmadinha. Um projeto da deputada federal pelo PT do Rio Grande do Sul, Maria do Rosário, proíbe a palmada (não, não se trata de surra, de maus tratos, de violência contra a criança, mas tão somente da velha e didática, dizem, palmadinha). O projeto vai, agora, para o Senado, a casa do senador Efraim, e, se aprovado, pais e mães que derem palmadas nos filhos podem ser punidos. Uma telespectadora do jornal Hoje, o mais voltado para donas de casa sensíveis, escreveu a Sandra Anemberg na quarta-feira contando que foi dar uma palmada na filha e a criança gritou que, se ela o fizesse, chamaria a Polícia. A coisa é séria e entre as sanções aos pais acusados está, entre outras penalidades, a submissão involuntária a tratamento psiquiátrico.
FURADEIRA E MORTE - Na prática, todos os pais podem traduzir leis como essa nos seguintes termos: pais e mães que se esforçam para educar seus filhos de acordo com seus princípios e sua autonomia doméstica serão, uma vez aprovada a lei anti-palmada, proibidos de aplicar a menor delas num filho. Mas podem ficar sossegados, porque dos castigos grandes seus rebentos não serão poupados pelo cioso estado brasileiro e seus parlamentares zelosos. Palmada de pai e mãe é proibida pelo Estado, mas de espancamentos, assaltos e tiros de marginais, e da Polícia, os filhos do Brasil não estão nem estarão jamais protegidos por lei nenhuma. A Polícia, muito ciosa do seu dever de educar, por exemplo, matou de pancada um motoboy em São Paulo há uma semana porque achou que se tratava de um ladrão. Sabe-se como é: um rapaz jovem, negro, na periferia, numa moto novinha e sem placa, merece um corretivo. No Rio, um policial do BOPE olhou para um a casa no morro na última quarta-feira, viu um homem fazendo algo com uma furadeira elétrica na parede da própria casa, deduziu que era uma arma e atirou para matá-lo, no que foi bem sucedido. Prevenção, argumenta-se.
Para quem não conhece o senador Efraim, deve haver registro no YouTube de duas ações delicadas e recentes dele com a equipe do CQC, da Band. Numa delas, ele empurra o microfone de Mônica Lozzi; em outra diz que vai ‘dormir’ com a mulher e a mãe de Rafael Cortez. Um cavalheiro com mandato, pois. No Rio de Janeiro, o advogado da bruxa loura intumescida de botox e tinta capilar amarelo ovo, acusada de torturar um bebê que adotou, argumenta raivoso na TV que ela, procuradora aposentada da Justiça e com 64 anos, não pode ser julgada pela justiça ordinária, mas em foro privilegiado, dado o seu status. E num país desses os parlamentares querem criminalizar a palmada paterna. Quem sabe algumas palmadas não tivessem sido suficientes para que os ilustres parlamentares brasileiros tivessem um caráter menos duvidoso.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.
Texto originalmente publicado no jornal A Tarde, Salvador/BA, edição 23 de maio de 2010.
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