Dois tipos de vergonha (moralidade 2)
A vergonha antiga não é apenas uma longínqua realidade histórica ou antropológica. Todos podemos conhecer por experiência, em nossa vida, ambas as vergonhas. Caracterizá-las porque correspondem a sociedades distintas é só uma maneira simples de explicá-las. A vergonha antiga é dominante nas sociedades tradicionais, em que existem códigos de honra ou normas de conduta para cada grupo e casta da coletividade.
O sujeito dessas sociedades é (e se sente) definido pelo grupo ou pela casta aos quais ele pertence: quem desrespeita os códigos não cumpre com os requisitos de sua própria identidade. Ele se envergonha porque seu ato compromete a significação de sua existência, quebra a integridade de seu ser. Por exemplo, um nobre do século 12, saqueando uma aldeia a caminho de Jerusalém, podia estuprar mocinhas sem sentir vergonha alguma. Por mais que já houvesse, na época, alguém para reprovar seus atos, estuprar mocinhas numa cruzada não era um comportamento que sacudisse os alicerces de sua identidade. No entanto, se ele faltasse à palavra dada, mesmo que ninguém soubesse disso e pudesse reprová-lo, ele, provavelmente, desmoronaria de cima de seu cavalo, traidor de sua casta e de seus ascendentes. Essa seria sua vergonha.
A modernidade acabou com os códigos de honra e as normas de conduta para cada casta, porque suprimiu as castas. Com isso, nasceu, ou melhor, tornou-se dominante um novo tipo de vergonha. Para explicar a mudança, recorro ao clássico de Norbert Elias, "O Processo Civilizador". Elias mostra que a modernidade transformou os tratados de boas maneiras. Até o século 15 ou 16, os tratados explicavam o que os homens da corte deviam fazer para pertencerem à corte (esse era, aliás, o sentido da "cortesia" -ser cortês significava pertencer à corte). A partir do século 15, os tratados começam a salientar que as boas maneiras não são apenas os hábitos de uma casta de cortesões, elas servem para que os outros olhem para a gente com simpatia.
A vergonha antiga é o sentimento de uma dívida simbólica que não foi paga: desrespeitamos nossa herança ou as leis de nossa estirpe, casta ou família, traímos o que nos definia. A vergonha moderna é o sentimento de uma perda de amor: os outros não gostarão mais de nós. A vergonha antiga é a sensação de uma indignidade interna: não estamos à altura de quem somos. A vergonha moderna é externa: o que nos envergonha é a rejeição, o desamparo que nos assolará quando ninguém mais nos amará. A vergonha antiga se preocupa com nossa identidade, a vergonha moderna se preocupa com nossa reputação.
Cuidado, nenhuma "leviandade" nessa mudança. Nosso lugar na sociedade não é mais decidido pelo berço, não é um destino; por isso mesmo, ele só pode depender da opinião que os outros têm de nós (e, portanto, de nossa capacidade de sermos aceitos e amados por eles). Conseqüência: na modernidade, as razões de vergonha não correspondem a um código fixo, elas variam ao longo do tempo, seguindo as mudanças dos hábitos e dos costumes, ou seja, da maneira de pensar da coletividade que nos aprova ou reprova.
Um único grande princípio, fixo e inaugural (que tentarei explicar na próxima coluna), afirma-se apesar da variação dos costumes: em matéria de amor, paixões e desejos eróticos, para nós, não há vergonha. Ou melhor, só há uma vergonha possível (parecida, aliás, com a vergonha antiga): a vergonha de não assumir e não viver o desejo da gente.
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