Televisão e escola: uma relação controversa
MALU FONTES
ENSAIO
Com políticas públicas que favoreceram a universalização do ensino, vieram à tona os debates sobre a relação entre quantidade e qualidade nos processos de ensino e aprendizagem. Com a emergência e disseminação das novas tecnologias, a escola confronta-se com a defasagem entre os níveis de apelo proporcionados pelo universo tecnológico e a realidade do ensino brasileiro, sobretudo na rede pública, ainda ancorada em métodos pouco mobilizadores dos alunos. Estes, por sua vez, estão cada vez mais imersos em interfaces extra-escolares ampliadores de conhecimentos e repertórios. Nesse contexto, o conteúdo televisivo ainda é pouco utilizado, encarado por professores com preconceito, silenciamento e negligência, o que consiste no desprezo de um poderoso instrumento didático, desde que lido em seus subtextos.
Em um país de 180 milhões de habitantes, com sérios problemas de distribuição de renda e marcado por uma realidade educacional formal precária e com dificuldades praticamente intransponíveis de acesso ao livro e à leitura, é inegável que boa parte da formação do repertório cultural da população seja construída a partir das informações produzidas e disseminadas em escala nacional pelo seu meio de comunicação mais popular: a televisão.
O Brasil, até a primeira metade do Século XX, era um país essencialmente rural. O advento da migração para os hoje grandes centros urbanos foi uma conseqüência dos processos de expansão econômica e de industrialização em larga escala que se deram a partir dos anos 50, com a gestão de Juscelino Kubitscheck, cujo lema era “50 anos em Cinco”. A implantação de pólos industriais atraiu para as grandes cidades não apenas uma classe média de mão de obra qualificada para gerenciar e operar as novas engrenagens econômicas, mas, principalmente um contingente de pessoas pobres e desescolarizadas em busca de novas oportunidades informais capazes de absorver mão de obra desqualificada.
De um modo panorâmico, pode-se dizer que esse contingente populacional que não passou pela cultura livresca, chegou à cidade grande e teve como principal instrumento didático a televisão. Alguns autores chegam a dizer que ao longo dos anos 60 e 70 a televisão brasileira teve um quê de manual de urbanidade para os migrantes que chegavam à cidade grande. Era na telinha que essas pessoas “aprendiam” como era a vida nas metrópoles. É claro, tratava-se de um aprendizado distorcido, uma vez que nem a televisão nem qualquer outro instrumento de representação da realidade, consegue reproduzi-la tal qual e como ela, de fato, é. No entanto, o papel exercido pela telenovela brasileira foi – e ainda é - extremamente significativo para a formação do repertório real e simbólico nacional.
Não é à toa que atualmente quaisquer organizações não governamentais ou militantes de quaisquer causas políticas e sociais buscam a qualquer custo fazer com que um autor de novela incorpore no repertório da trama o tema defendido por tais categorias. Um exemplo impactante recente que obteve grande repercussão, por exemplo, desse tipo de reivindicação de inserção de temas sociais em telenovelas se deu quando o autor Manuel Carlos incorporou em sua novela “Páginas da Vida” (Rede Globo) a questão da reação familiar ao nascimento de uma criança com Síndrome de Down. A esse fenômeno dá-se o nome de merchandising social, hoje muito comum em novelas.
Muitas vezes, o merchandising social mistura-se ao merchandising comercial, como se vê atualmente na novela “Duas Caras”. Parte do elenco, o núcleo da favela Portelinha, está empenhada em discutir ecologia, reciclagem, preservação da natureza, o que se configura em um caso de merchandising social, visto que tem como núcleo temático a defesa do meio ambiente. Entretanto, essa “causa”, na trama, está a reboque de um outro tipo de merchandising, esse extremamente rentável para as emissoras em termos comerciais. A defesa da ecologia está, em “Duas Caras” (Rede Globo), extremamente atrelada à propaganda explícita da empresa de cosméticos Natura, que, volta e meia, tem seus produtos, catálogos e estratégias publicitárias nas mãos e nas bocas de parte do elenco.
O exemplo do merchandising social é apenas uma das faces da moeda do poder didático da televisão. A sua relação com a escola, entretanto, é um campo muito mais minado. A televisão brasileira, herdeira legitima do modelo televisivo comercial americano, já foi inaugurado, lá pelos idos dos anos 50, sob o signo do consumo. Ou seja, a televisão brasileira, como a americana e diferente de boa parte da televisão européia, tem como compromisso básico o anúncio de produtos e sua programação é um pretexto para captar os telespectadores que vão consumir esses anúncios em intervalos dos programas, intervalos estes vendidos a preços estratosféricos aos anunciantes.
Embora se trate de concessões púbicas, é evidente o descompromisso das emissoras abertas de televisão no país com conteúdos supostamente educativos. Esse, no entanto, é um ônus que, diferentemente do que ocorre, não deve ser atribuído apenas às emissoras e seus gestores, mais aos poderes Legislativo e Executivo brasileiros, pois cada país tem a televisão que seus legisladores querem e desejam. Vale lembrar, no entanto, a máxima que diz hoje que a televisão brasileira atual ou está no altar ou no palanque. Ou seja, as emissoras, quando não são de propriedade de políticos, são propriedade de líderes religiosas, sobretudo aqueles ligados às igrejas chamadas de neo-pentecostais. Tai líderes, graças ao poder que obtêm com a comunicação eletrônica usada a serviço dos seus tempos lotados de tele-fiéis, também logo se tornam fortes líderes políticos, elegendo-se deputados federais e senadores, formando grandes bancadas com poder de lobby junto ao governo no Congresso Nacional. Isso quer dizer que não há interesse do Poder Legislativo em promover qualquer mudança estrutural e de conteúdo nas emissoras, uma vez que legisladores e empresários do setor da comunicação eletrônica no Brasil se confundem nas mesmas pessoas. Para que mexer em conteúdo televisivo se financeiramente as emissoras vão muito bem, obrigada?
Diante desse contexto, ou seja, graças a esse modelo bem sucedido de programação comercial, superficial, sem compromisso com a educação e com o aprofundamento de debates a respeito de temas sérios, a televisão brasileira não apenas nasceu sendo demonizada pela intelectualidade brasileira como continua a sê-lo no Século XXI. A postura do intelectual brasileiro diante da televisão é algo do tipo “não vejo e detesto”. Essa visão dos intelectuais, formados em uma tradição clássica ancorada na cultura livresca, contaminou irreversivelmente até hoje o olhar da escola e do professor para a televisão, estabelecendo um abismo de leituras entre os modos como os alunos a consomem e a forma como seus docentes a vêem (não a vendo e condenando-a aprioristicamente).
De uma perspectiva intelectual, tem-se clareza sobre a (de)formação da opinião pública brasileira promovida pela televisão. Entretanto, como diz o dito popular, quando não se pode com o inimigo, deve-se unir a ele. Nesse caso, de maneira intelectualmente estratégica, claro. Isso equivale a não condená-la e deixar de consumi-la, mas justamente mergulhar em seus modos de operação para melhor explicitá-la em suas contradições e fragilidades, estratégia fundamental para que se possa contribuir para a formação do senso crítico do estudante brasileiro que tende à passividade diante de uma das televisões tecnicamente mais bem elaboradas do mundo.
Essa parece ser a saída para a escola lidar com o repertório criado pela televisão no imaginário dos alunos. Combatê-la apenas condenando seus modos superficiais, sensacionalistas, caricaturais, espetaculares, distorcidos, limitados ou pobres de representação da realidade não tornará aluno nenhum um crítico sensato da TV e de seus conteúdos. Vista em seus contrapontos, sutilezas, paradoxos e subtextos, a televisão é um dos principais aliados dos professores, sobretudo do ensino fundamental e médio. Basta que o profissional de educação esse não tenha resistência a consumi-la e que o faça com um olhar capaz de desarmar as estratégias de sedução do veículo, aquilo que o telespectador comum não é capaz de identificar e, justamente por isso, cai aos seus pés, convencido da veracidade dos seus argumentos.
O desafio, no entanto, não está em fazer com que o aluno deixe de ver televisão e deixe de se seduzir por suas deformações de abordagens. O desafio, no que se refere à relação da escola com a cultura televisiva, está em outra instância: conscientizar professores de que é preciso saber consumir o melhor e o pior da televisão com um filtro desconstrutivista no olhar, um filtro que lhe permita enxergar o calcanhar de Aquiles do veículo, o que, aliás, é muito diferente de ter na ponta da língua um discurso de natureza moralizadora e condenatória aprioristicamente. Somente assim, com um olhar crítico e desconstrutivista diante do repertório televisivo, o professor torna-se capaz de compartilhar um repertório extraído da produção televisiva com seus alunos. Isso lhes permitirá, tanto professores quanto alunos, desmontar as estruturas verbais, imagéticas e sígnicas construídas para seduzir o telespectador e convencê-lo a seguir vendo o mundo pela superfície, sem espaço para a reflexão, o contraditório e a desconstrução das fórmulas e sentidos que lhe são dados de maneira tutelada e paternalista.
A questão, no entanto, convida a perguntas provocadoras: o jovem brasileiro, e mais especificamente os estudantes, têm um repertório raso que os levam a deixar seduzir-se pelos repertórios simplistas e reducionistas da televisão ou são vítimas de um sistema educacional e de um contingente de professores que, tanto quanto eles, alunos, não sabem identificar os contrapontos da TV? São os alunos ou os professores e o sistema educacional e curricular vigente que não têm habilidades para transformar a vertigem de imagens televisivas em eficazes instrumentos críticos, didáticos e provocativos, elementos capazes de conduzir a uma compreensão mais ampla dos significados reais e simbólicos dos conteúdos que atingem a todos diariamente?
Texto publicado na última edição da revista Ateliê, editada pelo Colégio Módulo.
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