sábado, 4 de outubro de 2008

Da cidade amada à cidade armada

ANTONIO RISÉRIO Não há quem não reclame da violência imperante, hoje, nas grandes cidades brasileiras. As áreas de risco parecem se expandir. As pessoas estão cada vez mais amedrontadas. Vivemos dias de onipresença do medo. Etc. Tudo bem. Acho que é isso mesmo. Só não consigo concordar quando as pessoas falam de "guerra civil". Ou de "Estado paralelo".
Em termos clássicos, estritos ou rigorosos - como queiram -, o que define uma guerra civil é o enfrentamento armado de blocos etnoculturais ou político-ideológicos opostos, cada qual determinado a derrotar (ou mesmo destruir) o outro, com a finalidade de se impor em determinado cenário, de forma apenas dominante ou inteiramente desimpedida, não raro a partir do controle do aparelho estatal, de onde passa a ditar e executar políticas e ações públicas, graças ao fato de ter assumido o monopólio da coerção e da repressão organizadas.
Não é exatamente isso o que estamos vendo, hoje, no horizonte da violência urbana no Brasil. Tivemos guerra civil com as rebeliões federalistas do século XIX em Pernambuco, na Bahia, no Rio Grande do Sul. Tempos de Frei Caneca, da Sabinada, da Farroupilha. Ou com a revolta "constitucionalista" de São Paulo, em 1932. Teríamos uma guerra civil, atualmente, caso, por exemplo, evangélicos e católicos passassem do plano retórico de seus duelos verbais para o campo de batalha, como no caso das lutas entre católicos e protestantes na Irlanda.
O que temos aqui, para além da criminalidade comum, ordinária, com seus assaltos e estupros de praxe, é uma outra coisa. É a existência de facções ou agrupamentos criminosos, devidamen te organizados e territorializados, que amedrontam o conjunto geral da sociedade, independentemente do pertencimento étnico ou da fisionomia ideológica do cidadão.
O que o narcotráfico quer, em primeiríssimo lugar, não é matar pessoas. Assassinar inocentes. Mas, sim, colocar e vender a sua droga no mercado. Não se trata de eliminar. Pelo contrário: o narcotráfico quer consumidores vivos, pouco importando que eles sejam pretos, mulatos, brancos, morenos ou amarelos; que sejam ambientalistas, neoliberais, defensores da reforma agrária ou predadores amazônicos; que sejam veados, lésbicas, transexuais ou homofóbicos.
Muito mais do que guerra civil, portanto, o que temos é uma pesada e feroz disputa armada por mercados. E as quadrilhas comuns que assaltam ou seqüestram também não escolhem ideologicamente suas vítimas. Escolhem quem tem bens e dinheiro para ser roubados. O que importa é levar jóias, equipamentos eletrônicos, dólares e coisas do gênero.
A disputa bélica que eventualmente explode não se dá entre segmentos étnicos, religiosos ou ideológicos de cidadãos. É um confronto entre "corporações", por assim dizer. Entre grupos armados profissionais, legal ou ilegalmente constituídos: bandidos, milícias, polícias, forças privadas de segurança. As facções criminosas lutam por dinheiro, não por princípios. A polícia existe para garantir a ordem - e, logo, combatê-las. Como bandidos e policiais se caracterizam, basicamente, pela mesma origem social e não defendem este ou aquele credo, apresentam fronteiras lábeis, porosas, entre si.
O outro lance, como disse, é que, até onde me é dado ver, o crime organizado não constitui de fato um "Estado paralelo". Há um exagero evidente na afirmação contrária. O que temos, na verdade, mais me sugerem múltiplas formações, ordenações ou configurações semi-estatais periféricas. Com suas leis, seus tribunais, suas práticas filantrópicas, etc. Mas não, exatamente, um verdadeiro "Estado paralelo".
Um outro aspecto é aparentemente paradoxal. Temos o crime do estágio atual da globalização. Mas, ao mesmo tempo, um crime que parece não poder viver sem uma base territorial concreta e específica: um morro ou favela do Rio de Janeiro, por exemplo. E assim o crime militariza suas bases territoriais. Os segmentos sociais privilegiados militarizam seus espaços residenciais (condomínios, grades, guaritas, etc.). A polícia militariza bairros e centros urbanos. Ou seja: vivemos em cidades militarizadas. Este é o processo mais espetacular por que passaram e vêm passando as principais cidades brasileiras. O processo de militarização da vida urbana.

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