domingo, 6 de junho de 2010

Do bicho aos bichos

Malu Fontes

O tema local preponderante nos telejornais foi o desdobramento do caso do bebê Rickelmy, encontrado sozinho, abandonado dentro de um carro num condomínio na Paralela, recentemente. Desde as primeiras notícias sobre o assunto, o bom senso do consumidor de informação lhe advertia que o anúncio, pela Polícia, do encontro do corpo da mãe ou da sua morte era tão somente uma questão de tempo. E assim foi. O episódio Camila Frias, a mãe do bebê, geraria mais repercussão no noticiário policial baiano do que se poderia imaginar, com desdobramentos, no mundo do crime, para bem além das fronteiras da Bahia. A morte da moça tem potencial de nitroglicerina suficiente para gerar expectativas de que as conseqüências do fato estejam apenas começando.

Uma facção criminosa baiana de traficantes, o Comando da Paz, encomendou 10 quilos de cocaína a fornecedores paulistas. Fornecedores, diga-se se passagem, com currículo assustador na hierarquia da criminalidade nacional, considerados cachorros grandes na espiral da violência brasileira e no poder paralelo hoje fincado nos presídios e que atendem pelo nome nada irrelevante de PCC, o Primeiro Comando da Capital, nascido e com seus principais núcleos em São Paulo.

INSETOS - Operadores do CP baiano, consideráveis imberbes se comparados aos graduados do PCC, tiveram a péssima ideia de acreditar que poderiam dar um golpe duplo na facção paulista. Não só mataram Camila (responsável por vir a Salvador fazer a entrega da droga), para não efetuar o pagamento dos RS 60 mil combinados pela mercadoria, como ainda fingiram-se de policiais (corruptos) e achacaram o PCC, cobrando-lhe RS$ 50 mil para ‘liberar’ a moça da cocaína delivery e seu colega de tarefa. A reação do PCC após a armadilha d tráfico baiano contra Camila não tardou. Aladim, traficante baiano transferido há pouco tempo para o presídio federal de segurança máxima em Catanduvas, no Paraná, justamente pelo seu potencial de atuar no CP mesmo no presídio, em Salvador, apareceu suicidado esta semana, enforcado com a calça do uniforme. Ninguém viu nem ouviu nada. Isso em um presídio de segurança máxima, supostamente equipado para detectar até o vôo noturno de insetos microscópicos.

Os episódios cada vez mais violentos protagonizados pelo crescimento de organizações ligadas ao tráfico de drogas em Salvador desde o início dos anos 2000 e responsáveis, inclusive, pela quantidade e audiência dos telejornais populares que apostam todas as fichas no sensacionalismo raso da repetição exaustiva das cenas de cadáveres, ocupam, no jornalismo policial, o lugar que no passado foi do Jogo do Bicho. Nas décadas de 80 e 90, por exemplo, justamente quando se dava o início da transformação do perfil do crime organizado, o que se vê hoje como resultado da briga de organizações em torno do comércio da droga, se via entre bicheiros. Não raro um dos integrantes da organização era abatido a tiros em circunstâncias espetaculares que faziam o sensacionalismo jornalístico lamber os lábios: dentro de restaurantes, em pleno almoço, como aconteceu no Cacique, no Centro Histórico, ou no sinal de trânsito, como ocorreu na Rótula do Abacaxi.

FATURA - De lá para cá o poder do bicho em si centrou fogo nos jogos ilegais de caça níqueis e, aparentemente, controlou suas rupturas internas. Os discordantes foram todos assassinados e coisa rara hoje é ver na TV e na imprensa da Bahia um crime relacionado a bicheiros. Diante dos traficantes muito jovens, insanos e dispostos a matar pessoas inocentes em chacinas tão somente para marcar território perante seus concorrentes, os bicheiros parecem hoje senhores cândidos, quase românticos em seus métodos. O (des)controle da violência mudou de mãos e de modos e os reflexos dessa mudança estenderam-se de modo assustador para toda a população, encurralada em meio a briga de traficantes que agem como bichos, feras humanas, que assassinam a esmo não apenas quem ameaça seus negócios, mas inocentes que têm o azar de viver e circular em áreas onde o estado não coloca o pé e o tráfico dá ordens.

Os crimes dos comandantes do jogo do bicho tinham, pode-se dizer, uma ética particularista. Assassinavam-se entre si, em acerto de contas, numa espécie de roupa suja lavada em escala pública, como se para não apenas punir aqueles que destoavam dos códigos de conduta da organização, mas, sobretudo, para avisar aos descontentes sobre o que poderia acontecer com quem se atrevesse a desafiar a hierarquia. Entre os traficantes, a violência é pulverizada, aleatória. Quando brigam, vê-se isso no noticiário cotidiano, tendem a matar, de propósito ou acidentalmente (bala perdida), inocentes que têm apenas a má sorte de viver ou estar num determinado lugar. Portanto, é grande o risco de a fatura do golpe dado pelo CP ao PCC ser apresentada não apenas aos responsáveis, mas a toda a cidade de Salvador.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto originalmente publicado no jornal A Tarde, Salvador/BA, em 06 de junho de 2010. maluzes@gmail.com

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