terça-feira, 1 de junho de 2010

Quem são elas?

Malu Fontes
O aborto é um tema tão submetido ao peso do tabu no Brasil, por questões de fundo religioso e principalmente católico, que nem mesmo as telenovelas, sempre tidas como vanguardistas na abordagem de temas tabus, como relações entre pessoas do mesmo sexo, barriga de aluguel, prostituição e dependência de drogas entre jovens da classe média, ousam tocar no assunto. E antes do telespectador insatisfeito com isso cobrar tal abordagem na teledramaturgia, é bom saber que tanto a telenovela quanto seus criadores obedecem a certas fronteiras temáticas sociais. Sabem até aonde os deixam ir. Não é a telenovela que é conservadora. O telespectador mediano é que não quer saber de certos temas. Não quer ouvi-los, vê-los.
Quanto ao aborto, esse telespectador sabe que o problema existe e que é grande. Como sabe. Sabe tanto que, quando a menstruação própria atrasa, ou a da filha dileta ou da namorada do filho cujo futuro seria borrado pela paternidade fora de época, muita dessa gente boa recorre a ginecologistas/obstetras em consultórios refrigerados ou a um vendedor clandestino de Cytotec, o misoprostol, um medicamento criado para o tratamento de úlcera, mas que, descobriu-se depois, produz como efeito colateral contrações uterinas que levam ao abortamento.
DESPENHADEIRO – O tema aborto é tão pecaminoso e varrido para embaixo do tapete que quando apareceu em uma novela foi para servir de objeto de punição para a heroína. Antes da Helena de Thaís Araújo em Viver a Vida, aliás a mais invertebrada das homônimas de Manoel Carlos, nenhuma protagonista tinha sequer conhecimento da palavra. Embora o antológico seriado Malu Mulher, protagonizado por Regina Duarte em 1979/80, tenha escandalizado a audiência casta ao pronunciar a palavra maldita, desde então, por mais ferrada que fosse a personagem que engravidasse numa novela, ela iria parir e todos seriam muito felizes. Vide Lady Daiane, a menina favelada e duas vezes grávida precoce em Senhora do Destino.
Eis, então, que o fenômeno do aborto aparece em Viver a Vida, apenas citado, já que ocorrido num passado remoto, antes do período de retratação da vida de Helena retratado na novela, E foi só pelo imperdoável aborto feito no passado, imperdoável até por parte dela mesma, que a protagonista comeu o pão da punição que o diabo amassou: apanhou na cara, literalmente, da personagem de Lília Cabral e, como se fosse pouco, de joelhos, voluntariamente ajoelhada e pedindo perdão. Por conta do tal aborto no passado, Helena chorou lágrimas intermináveis de culpa, pois foi pelo fato de ter sido acusada aos berros de ter feito um aborto que a mocinha perdeu a cabeça, expulsou a enteada do carro, obrigou-a a entrar num ônibus no deserto e este caiu num despenhadeiro, fazendo surgir a primeira heroína tetraplégica e cadeirante da teledramaturgia brasileira. Além de ser um pecado irreparável, vê-se, o aborto ainda causou tetraplegia de Luciana (Aline Morais), pois.
CASADAS E MÃES – Associado sempre ao silêncio, à clandestinidade, ao pecado e ao crime, o aborto irrompeu esta semana na mídia impressa e televisiva no Brasil, por conta dos resultados da primeira pesquisa nacional domiciliar sobre a prática no país. Idealizada e coordenada por Debora Diniz, antropóloga, bioeticista e documentarista, e Marcelo Medeiros, sociólogo, ambos da Universidade de Brasília, e financiada pelo Ministério da Saúde, a pesquisa revelou que uma em cada sete mulheres brasileiras já fez aborto ao menos uma vez na vida. Isso equivale a 15% das brasileiras entre 18 e 39 anos, cerca de cinco milhões de mulheres. A pesquisa não entrevistou mulheres que abortaram antes dos 18 anos e após os 39, nem considerou o segundo ou mais abortos feitos pelas entrevistadas, o que indica que o número pode ser ainda maior. A pergunta principal da pesquisa era: você já fez aborto? Como o aborto é crime no Brasil, as respostas eram sigilosas e colocadas em uma urna.
Quem são as mulheres que já fizeram aborto no Brasil? Embora o discurso religioso ilustre sempre a mulher que aborta como uma sem fé e solteira em relações instáveis, a pesquisa mostrou que praticamente a metade das cinco milhões de brasileiras que fizeram aborto é casada, em relação estável, tem religião definida (maioria é de católicas e evangélicas) e é de todas as classes sociais e escolaridades, embora o número de pobres e com menor escolaridade seja maior. Mais da metade disse ter recorrido a medicamentos clandestinos, o que indica que as demais recorreram ao amplo mercado, também clandestino, das clínicas de aborto. 55% teve que ficar internada por complicações após o procedimento. Esses são os dados, revelados pelas próprias mulheres que, por alguma razão, optaram pelo aborto, mesmo sendo religiosas, mesmo já tendo filhos e sabendo o significado da maternidade.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto originalmente publicado no jornal A Tarde, Salvador/BA, em 30 de maio de 2010. maluzes@gmail.com

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