A face relativa dos mortos
Malu Fontes
Como se sabe, todos os gêneros televisivos e jornalísticos, em temporada de Copa do Mundo de Futebol, curvam-se ao tema da bola. Nesse contexto, é impossível que as informações que passam completamente ao largo disso não fiquem submetidas a um escamoteamento. Mas, mesmo nesse período, em que a impressão que se tem é a de que o controle remoto conduz o telespectador sempre para um mesmo canal (tente passar um dia sem ouvir na TV as palavras vuvuzela, Soweto, Bafana Bafana e uma dúzia de outros termos e tire suas conclusões), tamanha a semelhança das pautas, o gosto pela informação é amigo íntimo de um eterno pendor pelo susto e pela infindável capacidade de surpreender-se.
Fora o tema obrigatório da Copa, a semana dos consumidores de informação em Salvador foi marcada por dois fatos: o primeiro, a prisão de 11 candidatos de um concurso candidatos a nada menos que uma vaga de oficial da Polícia Militar, todos fraudando a prova. O outro, a imagem do cadáver de Irmã Dulce, com resquícios da pele do rosto extremamente escurecida por 18 anos de túmulo e a dentadura exposta, em um ritual que, se não era a intenção da Igreja, foi, sim, transformado num espetáculo grotesco em nome da fé, embora a maioria dos telespectadores tenha fingido não estranhar, em nome de um tabu moral e religioso.
SANTIFICAÇÃO NO TELÃO - Os dois episódios, ambos fortemente noticiados na imprensa local e nacional, são fatos formuladores de perguntas para quem não cansa de buscar respostas na vã tentativa de ler o mundo contemporâneo em todos os seus paradoxos. É impossível ver as emissoras locais e nacionais noticiando e exibindo centenas de pessoas em vigília numa igreja em torno do corpo exumado de Irmã Dulce em tom solene e não se perguntar por que, no contexto jornalístico do cotidiano, a imagem de um cadáver choca tanto as senhorinhas católicas, contidas, de boa educação e cheias de cerimônia com a morte, e um ritual religioso de santificação em torno de um cadáver humano não só as comova, como as atraia, as emocione e as leve a fazer questão de encarar um corpo desenterrado com o que sobrou do rosto sob 18 anos embaixo da terra.
Para tranquilizar o desejo dos fiéis por tal visão, a Igreja Católica em Salvador avisou na imprensa, já no domingo, que as etapas da cerimônia que não fosse vista diretamente pelo público seriam exibidas em telões. Sim, os rituais da santificação acompanharam muito bem a modernização do mundo e lançam mão da tecnologia digital para mostrar um corpo exumado. Enquanto isso, usar camisinha e anticoncepcional continua sendo pecado, dizem as mesmas autoridades que providenciam telões para transmissão de exumação. Tudo é certo, tudo é errado e nada é uma coisa ou outra. Algo intolerável num contexto é venerável em outro. É tudo uma questão de referencial e ponto. E como se fala aqui de TV, é apenas uma questão de enquadramento. Cadáver exibido no Na Mira causa repulsa. No telão da Igreja, aproxima o indivíduo de Deus.
A mesma telespectadora contrita que têm ânsias de vômito ao ver na TV a imagem de um corpo morto pela violência, larga tudo em casa e corre para a Igreja para se emocionar com a morbidez de prostrar-se por minutos diante de um corpo reduzido, em termos de imagem, a uma pele radicalmente escurecida mumificada contornando uma dentadura de um branco reluzente e desproporcional em tamanho pelo encolhimento do que foi uma face. Entrevistadas pelos repórteres de TV, as senhorinhas contritas, sempre entre lágrimas, falam do quão sereno está o rosto da freira morta. A família não cansa de repetir o milagre da ausência de odores. O telão é só o mais simples dos artifícios desse show religioso em torno da morte embalada em santidade.
TABU – A prisão dos 11 candidatos a uma vaga de oficial da PM também se tornou manchete. Os onze foram flagrados fraudando o concurso, usando ponto eletrônico para transmissão de respostas, ao custo de R$ 20 mil pela aprovação (de cada um). Deus nos salve de uma polícia que já entra pelas portas dos fundos, corrupta e corrompida, pagando 20 mil para ter um salário de R$ três mil. E nos salve também de dentaduras desenterradas expostas na TV, santas ou não. Já bastam os dentes recém comprados e fora de tamanho ostentados por Ana Maria Braga e Stênio Garcia. Sim, abordar o grotesco nas hostes da religião mais poderosa do País é um tabu, inclusive para muitos que lêem este texto. Cadáver, nesse cenário, deveria atender pelo nome de relíquias. Mas este é um texto que se assume como aquilo que é: um ponto de vista laico.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto originalmente publicado no jornal A Tarde, Salvador/BA, em 13 de junho de 2010. maluzes@gmail.com
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