Novo Código Penal exagera na criação de mais crimes
Frederico Vasconcelos
A advogada Janaina Conceição Paschoal, de 37 anos, identifica nas propostas da Comissão de Reforma do Código Penal reflexos de um movimento doutrinário internacional que trata como crime "o não fazer". "São decisões judiciais em que as pessoas não são punidas criminalmente por terem feito algo ruim, mas porque não fizeram um bem", diz.
Ela critica a "histeria de determinadas bandeiras da intelectualidade esquerdista", que pretendem resolver com o direito penal comportamentos que poderiam ser coibidos com multas ou orientação da família e da escola. É o caso das propostas de criminalização do bullying, do abandono de animais, de casos de desrespeito ao ambiente e de discriminações.
Trechos da entrevista:
Folha - Como a senhora avalia o perfil da Comissão de Reforma do Código Penal?
Janaina Paschoal - O problema não é com o perfil da comissão. São profissionais capazes. Eu entendia que não era hora de mexer no código, porque a gente está nessa histeria com determinadas bandeiras. Por exemplo, o sujeito que corta uma árvore que pode cair na cabeça das crianças na rua responde a um inquérito por crime ambiental. Não tem cabimento.
A comissão tem conseguido brecar essa sanha punitiva?
As propostas infelizmente estão representando o que é a intelectualidade brasileira. A comissão acabou de colocar o crime de racismo entre os crimes hediondos. Eu não consigo ver isso de outra forma senão como bandeira do "politicamente correto".
Quais distorções a senhora identifica na academia?
Na academia, a mesma pessoa que tem um discurso libertário, de menor intervenção do direito penal - por exemplo, em casos de crime contra o patrimônio, mesmo aqueles com violência ou grave ameaça, casos de tráfico, casos de aborto, que acham que tem que legalizar completamente- têm discurso extremamente endurecedor, de intervenção estatal em searas que poderiam ser trabalhadas por outros campos.
Essas questões seriam resolvidas sem o Código Penal?
Nos últimos 15 anos, todos diziam que não se pode fazer lei penal com base no clamor público. Quando há um sequestro, todo mundo quer pena de morte para o sequestrador. Tem casos que a gente tem mesmo que prender. Mas uma vez que você manda alguém para a prisão, você está, infelizmente, quase desistindo dessa pessoa. A prisão desestrutura. A gente tem que definir quais são esses casos, e não ficar alargando isso.
E as penas alternativas?
A medida alternativa deveria ser para os casos em que você sempre mandou para a prisão. Mas estão criando outros casos, o que conturba a justiça penal com matérias que não são dela. E as pessoas vão aplaudindo, mas se está perdendo liberdade.
Quais as propostas mais polêmicas da intelectualidade?
Discriminação, bullying, meio ambiente, abandono e maus-tratos de animais. A gente tem estima pelos animais. É importante ensinar as crianças a respeitar a vida. Mas não se pode punir mais gravemente quem abandona um animal do que alguém que abandona uma pessoa.
A gente percebe que vai acontecendo uma relativização em relação àqueles valores que são mais importantes. É incoerente advogar o abrandamento nesses crimes clássicos e sustentar um acirramento em situações de controle de como cada um deve ser.
Como a senhora vê a intervenção do Estado nessa área?
A intelectualidade tirou Deus e pôs o Estado. Não obstante diga que não gosta da intervenção do Estado, não gosta em determinadas áreas: aborto, drogas, sexualidade. Em outras áreas, adora a intervenção do Estado. O Estado tem que dizer qual é a idade que seu filho entra na escola, como educar o seu filho, como se comportar... É papel da mãe observar se seu filho está sofrendo ou cometendo bullying. Você acha que é melhor prender ou intervir com uma conversa, com uma análise?
O que a senhora propõe em relação à discriminação?
Seria muito mais efetiva uma política de sensibilização dos pais e dos educadores do que criar um monte de crimes. É fácil você encontrar alguém que defenda arduamente que o racismo é crime, que o racismo é hediondo...
A senhora é favorável às cotas?
Eu sou muito pautada na meritocracia. Por que sou defensora das cotas? Não é por uma questão de compensar a escravidão. Na Faculdade de Direito da USP praticamente não há negros. Se abrirmos um espacinho hoje, daqui a dez anos teremos mais negros ocupando cargos de destaque, com remuneração significativa. Tem muito mais efeito do que sair prendendo um colega que, no jogo, chama o outro de "negão".
Em que medida essa pressão por leis mais duras resulta da impunidade?
A gente nota uma tendência de inflar as denúncias. Na cabeça do procurador, ele diz: "Vamos encher porque alguma coisa fica". Outra estratégia: colocar um monte de gente numa investigação, pessoas que não têm nada a ver, porque eles vão ficar apavorados e vão entregar os outros. Gasta-se tempo, dinheiro público e não muda nada.
A gente tem visitado estabelecimentos prisionais. Fico surpresa de constatar quanta gente está presa por furto. Hoje já existe a previsão de medidas cautelares alternativas à prisão. Quando a fiança é arbitrada, é impagável. Aí, o cidadão fica preso por um furto ridículo.
O que fazer com quem furta?
Não vamos deixar de punir o furto. Mas já existe lei possibilitando deixar essa pessoa fora do sistema prisional. Há um déficit grande de vagas prisionais. E você ocupa vagas com pessoas que não precisariam estar ali.
E sobre o ambiente?
Eu conheço gente processada porque tapou um buraco de uma praça sem autorização, porque cortou uma árvore sem autorização. Cobra uma multa, não leva o cidadão para a justiça criminal. As pessoas aplaudem a lei sobre os crimes ambientais. Essa lei é um lixo.
Quais seriam as propostas menos invasivas para não criminalizar esses atos?
No caso de abandonar animal, poderia haver multas. Multa-se tanto no trânsito... No caso do bullying, uma campanha de responsabilização, não criminalmente, para que as pessoas assumam as suas responsabilidades. Se você percebe que seu filho está destratando coleguinhas, é seu papel de educador dizer: "Meu filho, você não tem esse direito". Mas os pais se omitem, a escola se omite. Cada um deve ser responsável.
Texto publicado originalmente em 18 de junho de 2012, no jornal Folha de São Paulo, Caderno Opinião.
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