Um brasileiro entre curdos
Gabriel Bonis
A poeira se acumula nas ruas e os inúmeros pedintes sinalizam a pobreza de Van, cidade com predomínio do povo curdo na Turquia. Cercado por belas montanhas, o município de cerca de 1 milhão de habitantes ainda carrega as marcas do terremoto de 7,2 graus na escala Richter em novembro passado. O tremor foi seguido por outro de 5,7 graus poucas semanas depois – este tipo de atividade sísmica é comum no país.
Os dois incidentes naturais mataram mais de 600 pessoas e levaram ao chão cerca de 5 mil construções, das quais milhares de destroços permanecem nas ruas meses após o ocorrido. O abandono marca boa parte da população, que ainda vive em contêineres e assiste as crianças estudarem em tendas.
As cenas acima são narradas por Ricardo Tuma, estudante brasileiro de 17 anos, que integra uma missão voluntária na região. “É uma situação tensa e triste, mas a população parece feliz com a ajuda que vem recebendo”, conta. O alto número de desabamentos com os tremores ocorre, diz o estudante, porque a população não tem condições financeiras para seguir as recomendações de segurança contra terremotos durante a construção das casas.
“O governo derruba prédios e constrói outros, mas cobra da população por isso. E essas obras ajudam a acumular poeira, espalhada pela ventania constante”, relata. E completa: “É uma região pobre, para onde o governo envia pouco dinheiro porque a população é curda e separatista.”
A missão da qual Tuma faz parte surgiu da ideia de duas alunas turcas de um colégio internacional com sede no Reino Unido, onde o brasileiro estuda há mais de um ano. As jovens organizaram paralelamente à instituição um grupo de dez pessoas de diversas partes do mundo para levar ajuda à região e proporcionar uma melhor compreensão cultural da Turquia, o que despertou a atenção de Tuma. “[A Turquia] é onde todas as culturas se misturam, pois eles são muçulmanos, laicos, europeus e asiáticos. E em meio a isso, os curdos já estavam lá”, diz. “Por isso, tínhamos bastante trabalho a fazer.”
Com a intenção de permanecer no país por cerca de 20 dias, o grupo conseguiu o apoio de autoridades locais para visitar vilarejos isolados e extremamente pobres no entorno de Van e ficaram acomodados na Universidade de Yüzüncü Yıl. Paralelo às visitas e ao trabalho voluntário, os estudantes procuraram mostrar “um pouco do mundo” para as crianças locais, o que incluía aulas de inglês. “Eles são um povo muito hospedeiro, sempre tentando ajudar. Pareciam não entender que nós é que estávamos lá para ajudá-los.”
Turcos X curdos
A região de Van também guarda conflitos armados, chefiados pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que propõe a separação da Turquia. Entre as ações mais recentes do grupo político estão a explosão de uma bomba na cidade de Hakkari, no sudeste do país, que matou uma pessoa, e o sequestro de pelo menos dez trabalhadores na província de Igdir, extremo oriental da Turquia, que construíam uma estrada na base do monte Ararat.
Esse tipo de ação é frequente e visa “agentes do Estado turco”, como trabalhadores de obras de infraestrutura e professores. “Parte dos curdos os apoiam, mas não era possível perceber quem eram apenas falando com eles. Mesmo as pessoas que sabíamos que os apoiavam eram gentis e sabiam que estávamos lá para ajudar”, relata o jovem, que pensa em atuar como médico com populações em situação de risco, como em campos de refugiados e regiões da África atingidas pela epidemia do vírus da Aids.
A paixão parece ser de família, pois o jovem é filho do médico Rogério Tuma, colunista de CartaCapital. Os curdos compõem a maior etnia sem pátria da atualidade e habitam principalmente regiões da Turquia, Irã e Iraque em um território não independente denominado Curdistão – que cruza diversos países, como, além dos citados acima, Síria, Armênia e Azerbaijão.
Estima-se que sejam mais de 25 milhões de pessoas no mundo. Durante a conversa por telefone, Tuma conta ter percebido uma forte opressão aos curdos, cercados por bases militares. “Próximo as bases, há inscrições como ‘tenho orgulho de ser turco’ e ‘a Turquia não vai ser dividida’”. Referências aos movimentos separatistas curdos na região e à ausência de sentido de pertencimento desta população à nação turca. “Uma menina de um bairro curdo me disse que a polícia sequer passava ali, a não ser em casos de conflitos sérios.”
O clima repressivo também sufoca gestos simbólicos, como astear a bandeira curda, ato passível de prisão, segundo o estudante. A língua, prossegue, está morrendo e as tradições sobrevivem apenas nos detalhes do cotidiano. Além disso, os turcos das regiões mais desenvolvidas, relata, encaram a região curda como uma parte do país da qual não se orgulham. “Eles veem a pobreza e o subdesenvolvimento local como característica daquela população e não os veem como parte do país.”
Texto publicado originalmente na revista Carta Capital, em 14 de junho de 2012, no Caderno Internacional.
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