sexta-feira, 26 de abril de 2013

Quando Estado e Medicina tratam o crime como doença

Daniel Martins de Barros

Em tempos de discussão sobre delinquência juvenil, vem bem a calhar a reestreia do clássico Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick. Em versão digitalmente restaurada, o filme mostra em cores mais vívidas do que nunca o futuro distópico de ul-traviolência imaginado por Anthony Burgess em seu livro ho-mônimo. A história mostra o protagonista, Alex, narrando sua história, começando pelos atos bárbaros que cometia com sua gangue sem outro propósito que não a violência em si.
Ele acaba preso e condenado à prisão por 14 anos. É uma época de grandes avanços, no entanto, e surge a promessa de um tratamento revolucionário, que superará em definitivo as "teorias penológicas datas", como diz o ministro do Interior, defensor de que os presos sejam tratados "de uma forma puramente curativa". Em 15 dias, Alex está solto, após passar por sessões de condicionamento aversivo tão intenso que desenvolve náuseas insuportáveis diante de atos violentos.
Aos protestos do capelão do presídio, que brada contra a perda do livre-arbítrio do rapaz, o ministro responde que aquele era "o verdadeiro cristão", incapaz de reagir a não ser oferecendo a outra face. Tais críticas se avolumam após Alex tentar se matar, fazendo com que o governo suspenda o tratamento e o jovem recupere seu livre-arbítrio, ficando aberta a possibilidade de ele voltar a escolher a violência.
No livro, isso de fato ocorre no início do último capítulo, mas o protagonista termina percebendo que precisa crescer, direcionando o fim da história para sua recuperação. Como a versão americana do livro, que Kubrick usou como roteiro, não trazia tal capítulo, ele só tomou conhecimento desse final tardiamente, optando por não utilizá-lo e deixando a obra sem uma conclusão explícita.
Conhecido por rechear suas obras com uma multiplicidade de sinais e autorreferências, Kubrick resistia a falar sobre o significado dos filmes que dirigia, preferindo deixá-los abertos às diversas interpretações. Já sobre seu primeiro filme, Medo e Desejo, ele disse que "provavelmente significará muitas coisas diferentes para as diferentes pessoas, e é o que deve ser". Tendo se mantido fiel a tal princípio estético ao longo de toda a carreira, manteve a coerência em Laranja Mecânica, não indicando qual seria o caminho trilhado pelo protagonista após recobrar sua capacidade de escolha.
Mas independentemente da direção que Alex seguirá - e de todos os jovens infratores que ele representa - o filme (e o livro) estão aí para não nos deixar esquecer que quando o crime é tratado como doença, Estado e Medicina entram numa relação casuística fadada a estabelecer medidas inicialmente exageradas, e finalmente fracassadas. Texto publicado originalmente em 26 de abril de 2013, no jornal O Estado de São Paulo.

Daniel Martins de Barros é coordenador médico do Núcleo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.

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