Um lugar para beijar
Malu Fontes
Diante da morte do estudante de Produção Cultural da Faculdade de Comunicação da Ufba Itamar Ferreira, em virtude das circunstâncias em que o corpo e a roupa foram encontrados, não há como não pensar em uma morte dupla, medieval e com a assinatura nítida do preconceito, seja ela deixada por ladrões comuns que queriam roubar gadjets e deixar pistas falsas após golpeá-lo, ou por um homofóbico típico capaz de tudo. O que quer que tenha acontecido para matar Itamar, o que houve naquela cena do crime representa uma morte dupla, marcada pela assinatura da homofobia, encenada ou patológica.
Todos os dias ladrões matam pessoas, movidos pelo desejo de levar seus objetos. Já homofóbicos matam exclusivamente homossexuais e o fazem movidos pelo ódio sexual, embora haja quem pregue que toda morte causada por homofobia não passa de latrocínio comum. A assinatura perversa deixada na morte dupla de Itamar é traduzida na forma como ele foi largado dentro de uma fonte de praça pública, já morto ou deixado inconsciente para afogar-se após uma agressão na cabeça, mas com um detalhe extra para marcá-lo e matá-lo de novo, dessa vez moralmente: a bermuda abaixada até os joelhos.
Assim como assassinar uma pessoa com vários tiros no rosto significa, no código do crime, ajuste de contas, vingança por traição, jogar um homem morto numa praça com as calças arreadas é uma assinatura a serviço dos argumentos de quem vive alimentando o preconceito contra gays. Quantos não irão repetir coisas do tipo: ‘estão vendo? A homossexualidade é coisa do diabo e Deus pune’. Não são de frases assim que são feitas as declarações de Felicianos e Malafaias?
A forma como a roupa de Itamar foi deixada não lhe dá, perante os preconceituosos para quem os gays procuram a morte por desafiar as leis da natureza sexual ou de Deus, o direito de ser vítima. E quem o matou, por mais tosco que seja, queria justamente isso. Não bastava matá-lo e levar suas coisas. Era preciso deixá-lo humilhado após a morte, condenar sua sexualidade mesmo morto, matá-lo moralmente perante o mundo Feliciano.
A forma como a roupa de Itamar foi deixada não lhe dá, perante os preconceituosos para quem os gays procuram a morte por desafiar as leis da natureza sexual ou de Deus, o direito de ser vítima. E quem o matou, por mais tosco que seja, queria justamente isso. Não bastava matá-lo e levar suas coisas. Era preciso deixá-lo humilhado após a morte, condenar sua sexualidade mesmo morto, matá-lo moralmente perante o mundo Feliciano.
Independentemente do contexto que levou Itamar à morte, ele é, foi, vítima. E se ele tiver provocado ou aceitado uma paquera em relação a quem o matou? Ora, em que isso o torna moralmente culpado? Quanto a isso, vale citar um filme fundamental para entender o preconceito contra os gays.
Em 2009, a jornalista Neide Duarte, da Rede Globo, lançou um documentário que, em tempos de tanta gente que não se constrange em ofender homossexuais, é uma aula. O documentário chama-se Um Lugar para Beijar, pode ser visto no Youtube e mostra como o preconceito, inclusive o familiar, empurra os gays, principalmente os mais pobres, para as zonas de risco da vida: as áreas escuras da cidade, os botecos copos-sujos, onde nada no entorno soa familiar e seguro, pois é somente nesses espaços de perigo e nas madrugadas desertas que encontram alguma privacidade.
Afinal, quem aqui é macho o suficiente para saber o que é poder beijar outro homem à luz do dia numa área nobre? Do xingamento a uma tacada de golfe na cabeça, a imprensa mostra todo dia que tudo é possível. Sobra o gueto, o escuro e a madrugada ameaçadora.
Em 2009, a jornalista Neide Duarte, da Rede Globo, lançou um documentário que, em tempos de tanta gente que não se constrange em ofender homossexuais, é uma aula. O documentário chama-se Um Lugar para Beijar, pode ser visto no Youtube e mostra como o preconceito, inclusive o familiar, empurra os gays, principalmente os mais pobres, para as zonas de risco da vida: as áreas escuras da cidade, os botecos copos-sujos, onde nada no entorno soa familiar e seguro, pois é somente nesses espaços de perigo e nas madrugadas desertas que encontram alguma privacidade.
Afinal, quem aqui é macho o suficiente para saber o que é poder beijar outro homem à luz do dia numa área nobre? Do xingamento a uma tacada de golfe na cabeça, a imprensa mostra todo dia que tudo é possível. Sobra o gueto, o escuro e a madrugada ameaçadora.
Texto publicado originalmente em 16 de abril de 2013, no jornal Correio da Bahia, página 02.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.
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