quinta-feira, 23 de abril de 2015

'Idoniedade' ou 'idoneidade'?

Pasquale Cipro Neto

Diga lá, caro leitor: você age com "espontaneidade" ou com "espontaniedade"? E o que se exige para o exercício de alguns ofícios (o de político, por exemplo): atestado de "idoneidade" ou de "idoniedade"? Ontem, durante o trajeto de casa para o jornal, ouvi pelo rádio do carro um figurão nacional dizer que sempre age com "espontaniedade".
Está aí um dos tantos casos de palavras traiçoeiras, que volta e meia usamos ou ouvimos numa forma inadequada, "parecida" com a correta, mas incorreta. Age-se com "espontaneidade" (nome da qualidade ou do caráter de espontâneo).
Como ensinam os bons fundamentos dos estudos linguísticos sérios, em geral o falante não "inventa" formas (palavras, construções) a partir do nada, o que significa que teoricamente (quase) sempre há alguma explicação para a "invenção".
No caso de "espontaniedade", a razão do equívoco pode estar no fato de que talvez usemos mais adjetivos terminados em "-io", que dão origem a substantivos terminados em "-iedade", do que os terminados em "-eo", que dão origem a substantivos terminados em "-eidade". Outra razão pode estar na questão fonética, já que em boa parte do país o "e" da terminação "-eo" de "idôneo" ou "simultâneo", por exemplo, tende a ser pronunciado como "i", o que pode levar o falante a "igualar" a terminação dos substantivos.
Os adjetivos terminados em "-io" talvez nos venham à mente mais rapidamente do que os que terminam em "-eo": "sério", "transitório", "obrigatório", "sóbrio", "impróprio"... Dessa turma, fazemos, respectivamente, "seriedade", "transitoriedade", "obrigatoriedade", "sobriedade", "impropriedade"...
E os adjetivos terminados em "-eo"? Vejamos alguns: "idôneo", "heterogêneo", "homogêneo", "espontâneo", "simultâneo", "contemporâneo". Como ficam os substantivos abstratos derivados dessa turma? Tome cuidado: eles terminam em "-eo" e não em "-io", portanto nada de "iedade"; o que temos agora é a terminação "-eidade": "idoneidade", "heterogeneidade", "homogeneidade", "espontaneidade", "simultaneidade", "contemporaneidade".
Leia novamente a listinha acima. Atire a primeira pedra aquele que nunca trocou a terminação "-eidade" dessas palavras por "-iedade". Os corretores ortográficos mais recentes não nos deixam perceber o erro. Uma forma errada como "idoniedade", por exemplo, é automaticamente trocada pela correta ("idoneidade"). Nesse caso, o corretor lembra a TV naquela genial canção dos Titãs ("A televisão me deixou muito burro, muito burro demais...").
É sempre melhor saber o que se faz, o que exige conhecimento, que é muito diferente da automação.
Aproveito para lembrar que é preciso tomar cuidado com palavras como "japonesinho", "princesinha" ou "pretensioso", entre tantas outras. No caso das duas primeiras, o piloto automático nos faz escrevê-las com "z", já que o diminutivo... O fato é que as duas derivam, respectivamente, de "japonês" e "princesa", em que há "s" na última sílaba. Esse "s" fica nos termos derivados.
No caso de "pretensioso", o piloto automático nos faz morrer de vontade de tascar um "c". "Ganancioso", "malicioso", "tendencioso", entre tantas outras, são grafadas com "c". Essas três palavras derivam, respectivamente, de "ganância", "malícia" e "tendência", que se escrevem com "c", enquanto "pretensioso" deriva de "pretensão"...
Como dizia um velho e conhecido telejornalista, a ortografia não tem a menor importância, mas pode arruinar reputações... É isso. 

Texto publicado originalmente em 23 de abril de 2015, no jornal Folha de São Paulo.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial