quinta-feira, 23 de abril de 2015

Policiais miraram Geovane e atingiram a corporação

Malu Fontes

Dar um tiro no próprio pé chega a ser uma expressão desrespeitosa com a vítima quando se trata de metaforizar a ação dos policiais da Rondesp que sequestraram o jovem Geovane Mascarenhas, 22 anos, levaram-no no porta-malas de uma viatura para uma das dependências da própria Rondesp, no bairro do Lobato, e lá o torturaram e mataram com todos os requintes de crueldade, culminando com a decapitação. Embora nada justifique tamanha violência, é preciso lembrar que o rapaz foi abordado e sequestrado sem que nenhuma razão houvesse, sequer, para que fosse preso.
Como se fosse pouco, os policiais acusados roubaram a moto e o celular da vítima e, além de decapitar e incendiar o cadáver longe do local da execução, arrancaram do corpo as áreas tatuadas da pele, para dificultar um possível reconhecimento. Antes, desativaram os serviços de geolocalização da viatura, mecanismo obrigatório justamente para servir como dispositivo de controle e evitar esse tipo de irregularidade por parte de policiais utilizando veículos da corporação.
Os 11  envolvidos no caso podem ser ases da violência, nada vai trazer Geovane de volta   à vida, mas ainda resta apostar na burrice de agentes do estado que agem assim acreditando que podem driblar tecnologia. Graças a imagens de câmeras do circuito de segurança da rua onde a vítima foi abordada, associadas ao fato de dados do GPS da viatura, mesmo desativado, serem armazenados em um local seguro e distante, foi possível reconstruir todo o trajeto e dar um desfecho ao caso.
Além de produzir um episódio dos mais bárbaros da crônica policial baiana recente, os policiais envolvidos no caso deram um tiro não apenas no pé da Polícia, como instituição, mas na cabeça inteira da própria corporação, a Polícia Militar. Num coletivo de milhares de homens e numa sociedade marcada por índices de violência inaceitáveis, onde dia sim e outro também bandidos cometem atrocidades, periga a sociedade começar a não ver nada demais na atitude de funcionários públicos dementes de perversão capazes de arrancar a cabeça e a pele de um rapaz simplesmente porque sentiram vontade. Se soubessem se expressar, os 11 homens, agora sem nenhum segredo, certamente repetiriam Jânio Quadros com e como cinismo e farsa: fi-lo porque qui-lo.
Povo fardado
Como no poema Mãos Dadas, de Carlos Drummond de Andrade, ‘não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”. O tempo presente é feito de muitas estranhezas, mas não a ponto de ver e aceitar como normal a sociedade aplaudindo policiais que defendem ou praticam logísticas de bandidos. O Geovane de ontem pode ser um amigo ou um familiar seu no futuro e é bom não duvidar. Tem sido comum nas redes de troca de mensagens a circulação de vídeos em que bandidos matam e mutilam com crueldade indescritível alguns rivais. Mais inquietante que essas imagens em si e sua brutalidade é o teor e a intenção do  endereçamento. Quem envia sempre quer dizer, mesmo que o faça de modo oblíquo: ‘veja como os bandidos fazem. Você quer que a polícia faça diferente?’ Sim, a Polícia não pode adotar como sua a lógica, a prática e o comportamento do bandido.
Infelizmente, a sociedade está tão doente que há quem ingresse na Polícia justamente para ter licença para agir como os matadores de Geovane. Assim como também há, do lado de cá, hordas sociais urrando em louvor a estes. Fala-se em despreparo, em falta de treinamento dos policiais, mas em toda a família que se diz de bem há, hoje, alguém os instigando e pedindo sangue nas ruas. Como ouvi de uma voz sensata recentemente, ‘a polícia é o povo fardado’. Texto publicado originalmente em 23 de abril de 2015, no jornal Correio da Bahia, página 02.

Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo da Ufba. 

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