"Vivemos um momento de muita artificialidade"
Marcos Dias
A psicanalista Urania Tourinho Peres costuma aproximar a psicanálise não só da literatura, mas da cultura, em sentido amplo. Leitora de Marcel Proust, a quem considera “um mestre da alma humana”, mas também de Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke e Manuel Bandeira (que lhe dedicou o poema Urania Maria, integrante do livro Mafuá do Malungo), se referiu à psicanálise, certa vez, como “a poesia de cada um”.
Teve o privilégio de fazer dança com Yanka Rudska e assistiu aulas com os memoráveis Domitila Amaral, Koellreutter, Martim Gonçalves e Yulo Brandão, nos anos do reitorado de Edgard Santos na Ufba. Quando sentiu que a psicanálise teria uma centralidade em sua vida, ainda não havia psicanalistas em Salvador.
Foi pioneira, nos anos 1980, ao fundar o Colégio de Psicanálise da Bahia, promovendo congressos internacionais na capital baiana com grandes nomes da psicanálise da Argentina e da França. “A psicanálise é complexa, ela não se serve de regras que visem ensinar uma determinada maneira de leitura da realidade. A psicanálise é criativa, inventiva, e por isso mesmo próxima da arte”, diz ela.
Autora de livros como Ensaios de Psicanálise (Escuta, 1999) e Depressão e Melancolia (Jorge Zahar, 2003), entre outros, ela confirma nesta entrevista o que Bandeira disse sobre seu nome: “Em ti se vê, Urania Maria, unir-se um a outro, infinito, o mito à sabedoria”.
Na sua opinião, o que torna as pessoas felizes?
Freud diz uma frase interessante: “O projeto de que o homem seja feliz não se encontra no plano da Criação”. Esta afirmativa nos permite pensar que a felicidade tem que ser conquistada. Eu diria que vários fatores, como em qualquer conquista na vida, estão implicados nessa procura. Pensar a felicidade como um estado permanente é impossível. Agora, o que torna o homem feliz não tem uma única resposta, pois somos constituídos em nossas diferenças.
Podemos, contudo, afirmar que, atendidas as condições razoáveis de sobrevivência, o caminho para a felicidade será facilitado. Acontece que grande parte da humanidade sobrevive sem os recursos mínimos de existência, mas, ainda assim, submergidos em uma condição de extrema carência, encontramos os rastros da alegria e, por que não, os lampejos da felicidade; assim como sabemos, também, que a riqueza material não é garantia de um saber viver.
Em O Mal-estar na Civilização, Freud diz que as causas do sofrimento humano residem nas ameaças da natureza, no processo de envelhecimento e morte e, sobretudo, na relação entre as pessoas. Os seres humanos se odeiam?
Freud enumerou essas três causas e fez a observação de que a mais grave, a mais difícil, era o relacionamento entre os homens. O amor, como o ódio, está presente na humanidade. Você me pergunta se os seres humanos se odeiam… Nós temos tido infinitas manifestações de predomínio do ódio; as guerras, por exemplo.
O século 20 foi considerado o mais atroz da humanidade. Ele afirmava que “as pessoas não são as criaturas gentis que acreditamos que elas sejam”. Enfatizava a carga de hostilidade, de competitividade que o ser humano traz e que é uma das maiores fontes do sofrimento. Mas também observava que o “bom humor” é um indicativo de boa saúde mental, desfrutar a alegria, ter a capacidade de fruição das coisas simples, como a beleza de uma rosa. Nessa capacidade de fruição, de sideração, não podemos deixar de mencionar a criança portadora de um olhar, mistura de curiosidade e espanto já perdidos para os adultos. É possível que este olhar ainda possa ser encontrado entre os artistas.
Mas o amor frequentemente não está sozinho, as relações costumam ser de amor e ódio.
Com certeza. Mesmo a relação mãe e filho, como protótipo da relação amorosa, não é uma relação desprovida de ódio. Nenhuma relação o é. Uma mãe sofre em todo o seu relacionamento com o filho, e isso provoca nela uma natural reação raivosa. Agora, claro que essa raiva é temperada por um grande amor, quando há amor.
No seu livro Depressão e Melancolia, você afirma que o ser humano não vive sem o seu sofrimento.
Você acha que vive? Vive não. Existem algumas pessoas que têm mais dificuldade em superar o sofrimento; outras, mais facilidade. A questão central está na maneira como as perdas são suportadas e vividas, como os lutos são vividos, porque a vida é uma permanente sucessão de perdas. O bebê, ao nascer, já perde todo o envoltório da placenta que o protegia, e tem cortado o seu cordão umbilical. E a entrada na vida é marcada pela necessidade do grito.
Para alguns, o passado tem uma força predominante, outros conseguem neutralizar essa força do vivido e podem posicionar-se melhor no presente e nas expectativas futuras. A psicanálise conduz o sujeito a questionar a sua posição de infelicidade, a interrogar-se: por que tanto insucesso e infelicidade? Interrogação que poderá exatamente retirá-lo dessa posição sofredora.
A psicanálise desenvolve-se há mais de um século, e, mesmo assim, não parece que as relações estejam melhores…
Se o homem não vive sem o seu sofrimento, também não vive sem os seus conflitos. No início do século 20, muita expectativa foi depositada na conquista da “liberdade sexual”. O próprio Freud considerava que no dia em que surgisse um anticoncepcional efetivo, homens e mulheres desfrutariam de uma sexualidade mais plena. De certa forma, conseguimos essas duas conquistas; entretanto, nem por isso a vida sexual das pessoas perdeu os seus entraves. Homens e mulheres ganharam a liberdade no sexo, mas perderam muito do encontro amoroso.
A transitoriedade das relações, a fugacidade dos encontros provocam uma frustração afetiva e um desencanto quanto à possibilidade de constituição de uma família. Não há diferença, quer se trate do homem ou da mulher, pois ambos buscam a felicidade, e o amor é um caminho para essa conquista. O que constatamos é que, apesar das conquistas, dos ganhos nos relacionamentos que indiscutivelmente são mais sinceros, os sintomas que fazem sofrer continuam a existir.
Há muita cobrança?
Na competitividade reinante em nossa sociedade, a exigência com o desempenho é generalizada, inclusive no sexo. Hoje, é comum o jovem medicalizar o seu desempenho sexual, pois existe uma pílula para lhe dar a garantia. A força do desejo fica em segundo plano. Estamos vivendo um momento de muita artificialidade. Não é uma constatação saudosista, pois bem sabemos das dificuldades de nossos antepassados e de nossas conquistas atuais, porém é certo que os conflitos continuam, e a guerra marca a sua presença em nosso século, lamentavelmente.
O que está em jogo na análise?
Tudo. O sujeito com todas as suas inquietações. Um psicanalista pode ser procurado por alguém com um conflito sentimental, uma irrealização amorosa e sexual, um desencontro profissional, por um sentimento de profunda tristeza e incapacidade frente à vida, mas também em busca de autoconhecimento. Cada qual chega com sua bagagem de dores e incertezas, mas chega sempre com interrogações.
A análise é uma possibilidade de reconstruir sua história pessoal. As palavras aprisionam, porque, através delas, construímos uma história que nos cristaliza. E o inconsciente nos conduz à crença de que, por trás desse aprisionamento da história infantil, ou sendo mais precisa da neurose infantil, podemos descobrir e construir uma outra história. Não mais uma história que nos foi imposta e nos alienou, mas a certeza da nossa possibilidade de autonomia.
De certa forma, somos constituídos pelo que os outros nos dizem que somos, dizeres que vão alimentando a nossa identidade. Uma análise vai propiciar uma releitura de todo esse processo necessário, mas alienante. Uma psicanálise nos faz mudar de posição na vida. Não é um acontecer simples, é complexo.
Quando você muda sua posição na vida, você também muda a leitura que você faz do outro e das circunstâncias da sua vida. Abreviando, podemos dizer que dois eixos marcam o percurso de uma análise: um, guiado pela pergunta: quem sou eu? O outro eixo, por outra pergunta: como estou existindo? Identidade e existência.
Você se refere à psicanálise como “a poesia de cada um”.
O poeta liberta a palavra do sentido, o psicanalista também trava uma luta com a palavra e com o sentido; um produz uma obra de arte cujo reconhecimento vem do público; o outro também trabalha em uma construção, digamos, um poema interior, porém possível de ser lido apenas por quem o escreveu e leu. Há muitos anos, é verdade, escrevi um texto ao qual intitulei Psicanálise, Poesia de Cada Um.
Acho que me inspirei em Carlos Drummond de Andrade, que, em uma entrevista concedida à Revista Manchete, e perguntado pelo jornalista se ele havia em algum momento de sua vida feito uma análise, respondeu: “A minha poesia é o meu divã de analista”.
Como aproxima a psicanálise e a arte?
Não apenas por uma questão de bagagem cultural aproximo a psicanálise da arte, da poesia, mas, sobretudo, pela leitura que faço do inconsciente. A psicanálise tem uma sustentação na ciência, mas ela se desenvolve através da arte; a psicanálise tem que ser criativa.
É muito frequente o analisando demonstrar o anseio por uma palavra que supostamente acalmaria o seu intenso sentimento de vazio interior, a sua angústia, o seu sofrimento. Acho que o ponto de partida para qualquer que seja a criação humana é sempre o mesmo: a interrogação sobre o sentido da vida e o temor pelo vazio da existência.
Vira e mexe, alguém decreta o fim da psicanálise e surgem técnicas terapêuticas. O que pensa a respeito?
Não tenho a menor dúvida da permanência da psicanálise, da imortalidade freudiana. É verdade que diferentes modalidades terapêuticas vão surgindo, mas, se pensarmos bem, o ponto de partida é sempre freudiano: a escuta do paciente. A psicanálise é complexa, ela não se serve de regras que visem ensinar uma determinada maneira de leitura da realidade.
A psicanálise é criativa, inventiva e, por isso mesmo, próxima da arte. É impossível a existência de um manual psicanalítico. Ela procura ultrapassar a constituição alienante pela qual fomos formados e, exatamente por isso, fica fora de uma didática da existência. Se as ofertas terapêuticas estão aumentando é que está havendo maior demanda, e nem todos têm de fato desejo de análise.
Muitas vezes, a procura é apenas para uma resolução sintomática, e, quando essa ocorre, a pessoa faz a opção de não prosseguir em análise. Está bem a decisão, pois o psicanalista sabe que uma psicanálise não pode ser imposta, e que se a resolução terapêutica dos sintomas foi suficiente para o sujeito, ele tem todo o direito de se satisfazer com ela.
O psicanalista sabe também, e, se não sabe, deveria saber, que, frente à intensidade de um sofrimento, a sua primeira preocupação deve ser terapêutica. Entrevista publicada originalmente em 07 de julho de 2012, na revista Muito.
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