Censo inédito aponta violações aos direitos humanos nos manicômios judiciários do Brasil
Um em cada quatro indivíduos em medida de segurança não deveria estar internado e 21% da população encarcerada cumpre pena além do tempo previsto.
Luciana Barreto
Passar pelos pesados portões de ferro de um manicômio judiciário é quase sempre um caminho sem volta. Entre muros e omissões, milhares de vidas seguem invisíveis aos olhos do Estado e da sociedade. Abandonados e anônimos, duplamente marginalizados - seja pelo estigma do transtorno mental seja pela situação delinquência -, os loucos infratores no Brasil sequer configuravam um número. É o que revela o primeiro mapeamento dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico do Brasil, que identificou 3.989 pessoas internadas nas 26 unidades do país.
Mais da metade são negros, pobres e com baixa escolaridade, homens e mulheres com epilepsia, esquizofrenia, retardo mental, transtornos afetivos, de personalidade, da preferência sexual ou devido ao uso de álcool e outras drogas. Passados 90 anos da criação dos hospitais-presídios no país, uma pesquisa inaugural traz o primeiro perfil nacional de uma população esquecida: A custódia e o tratamento psiquiátrico - Censo 2011 - estudo idealizado e coordenado pela professora Debora Diniz, do Departamento de Serviço Social da UnB (Universidade de Brasília), e financiado pelo Ministério da Justiça.
Os resultados do censo mostram tanto a vulnerabilidade dessa população quanto um cenário alarmante: um em cada quatro indivíduos não deveria estar internado; 47% estão encarcerados sem fundamentação legal e psiquiátrica; 21% cumprem pena além da estipulada em sentença; sem contar o contingente internado há mais de 30 anos, contrariando a pena máxima admitida pelo regime jurídico brasileiro – os pesquisadores encontraram 18 indivíduos nessa situação.
“A invisibilidade do louco infrator não foi rompida com as conquistas da Reforma Psiquiátrica dos anos 2000”, afirma Débora Diniz, na introdução do livro em que apresenta o estudo. A obra é o primeiro e-book da Editora da UnB, em parceria com a Editora Letras Livres. Acesse aqui.
A população que não deveria estar internada soma pelo menos 741 indivíduos dos 3.989 identificados. São homens e mulheres que dispõem ou de laudo médico atestando que seu comportamento não representa mais perigo ou de sentença judicial determinando a saída da internação. Sem contar aqueles internados sem que haja processo judicial.
“É um cenário conservador, pois não avaliamos a qualidade dos laudos médico-periciais ou os argumentos das sentenças judiciais. E se considerarmos os indivíduos internados com laudos psiquiátricos ou exames de cessação de periculosidade em atraso, são 1.194 pessoas que não sabemos se deveriam estar internadas”, explica Debora.
O censo revela ainda que 41% dos exames de cessação de periculosidade estão em atraso. Segundo Debora Diniz, o atraso médio praticado para a emissão de laudos é de 10 meses, sendo que a legislação estabelece como limite 45 dias. “Não são asseguradas as determinações legais de permanência, tampouco os laudos psiquiátricos e as decisões judiciais. Estamos diante de um grupo de indivíduos cuja precariedade da vida é acentuada pela loucura e pela pobreza, mas também diante de vidas precarizadas pela desatenção das políticas públicas às necessidades individuais e aos direitos fundamentais”, afirma a professora.
Outra conclusão do mapeamento está associada a graves irregularidades no campo legal, já que a medida de segurança vem sendo aplicada por tempo indeterminado. Dos 3.989 internados identificados, 2.838 já haviam recebido sentença judicial acompanhada de laudo psiquiátrico atestando o transtorno mental (em medida de segurança), mas 1.033 aguardavam sentença (internação temporária), o que equivale a 26% do contingente populacional enclausurado em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Além deles, 117 esperavam conversão de pena em razão de alegado transtorno mental.
Para Debora Diniz, o resultado mais importante da pesquisa foi dissociar periculosidade da doença mental. "O diagnóstico psiquiátrico não é determinante para a infração penal cometida pelo louco. O que existe são pessoas em sofrimento mental que, em algum momento da vida, cometeram infrações penais", expõe.
Pelo estudo, a periculosidade não é demonstrada pelos diagnósticos psiquiátricos nem pela trajetória criminal dos indivíduos. “Diante da realidade que se faz evidente, o Estado não pode admitir que uma entre quatro pessoas nos manicômios judiciários não deveria estar sob esse cruel regime de encarceramento. Além disso, para quase metade desse contingente a internação não se fundamenta por critérios legais e psiquiátricos”.
Para chegar aos resultados, os pesquisadores estiveram nos 26 hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico no país, analisaram os dossiês de cada internado e preencheram questionários eletrônicos com perguntas padronizadas. O pré-teste foi realizado um ano antes na unidade de custódia judiciária mais antiga do país, no Rio de Janeiro.
É a primeira vez na história que esses esquecidos anônimos são mapeados nessas híbridas estruturas de confinamento penal e internação psiquiátrica. “Ao flagrarmos um cenário atravessado por desolação e abandono, atravessado por irregularidades, necessariamente abrimos uma agenda política sobre e crime e loucura, um enfrentamento inédito de como essa questão vem sendo conduzida no país, gerando excessos e omissões”, avalia Debora Diniz. “Os resultados exigem ação imediata do Estado”, defende.
A população internada nas unidades é majoritariamente masculina, negra, de baixa escolaridade e com inserção periférica no mundo do trabalho. Em geral, são pessoas que cometeram alguma infração contra alguém da família. “Se a principal expressão é contra a família, como esperar dela apoio, suporte, acolhimento? Como a casa é entendida como um espaço de sofrimento, gerando a manifestação da loucura, resta ao Estado assumir a reinserção social e restaurar os laços comunitários dessas pessoas. É uma população altamente vulnerável, sem dúvida pessoas completamente desfiliadas da vida social”, afirma Debora.
De acordo com Wederson Santos, supervisor do estudo e doutorando em Sociologia, o censo revelou marcadores de grande vulnerabilidade social e o perfil da população internada em medida de segurança ilustra a desigualdade do país. “Esse retrato, agora explícito, certamente irá exigir do Estado políticas de assistência social, ações inclusivas, pois esses indivíduos precisam ser novamente empoderados para tocar suas vidas”, afirma, concordando com Debora Diniz quando ressalta que “o retorno para a família não é simples”.
Segundo Wederson, é fundamental uma imediata interface entre as políticas de saúde mental e de assistência social: “a responsabilidade é do Estado, já que restaurar a autonomia e os laços comunitários não é algo simples tampouco automático”.
Júlia Albuquerque, mestranda em Política Social e também orientanda de Débora Diniz, participou da coleta de dados da pesquisa, visitando 23 das 26 entidades. Ela se diz impressionada com a precariedade material dos hospitais-presídios, da dificuldade flagrada na realização dos laudos e do número insuficiente de profissionais trabalhando nas unidades. “Percebemos que essas pessoas estão mais sob a visão penal e o caráter de custódia do que sob o olhar da saúde e dos direitos humanos”, afirma.
Para a estudante de Direito da UnB, Sinara Gumieri, integrante da equipe e pesquisadora de iniciação científica orientada por Débora, “esse trabalho foi fundamental para compreender não apenas os marcos legais que orientam a problemática, mas os marcos políticos que definem uma realidade tão dramática. Sem dúvida, esses resultados abrem uma agenda política importantíssima. Esperamos que o censo dê a devida visibilidade a pessoas que até então sequer tinham sido quantificadas”.
Segundo Cássia Valéria de Castro, diretora-executiva da Anis e mestranda em Ciências da Saúde, também orientada por Debora Diniz, este foi um projeto estratégico para a promoção dos direitos humanos de populações vulneráveis. “E esta é uma das mais vulneráveis que existem hoje no Brasil. Portanto, olhar para essas pessoas é cuidar delas. O que queremos é que as políticas públicas para essa população sejam incrementadas e, consequentemente, que a justiça e a saúde passem a cuidar mais dessas pessoas”, disse a diretora.
Para Debora Diniz, esse censo configura um marco político inaugural, lançando um facho de luz sobre uma população invisível, cotidianamente silenciada e entorpecida pela tradicional coerção medicamentosa, e ainda esquecida, abandonada por um descaso histórico, além de recorrentes desmandos de ordem legal e penal.
Como conclusão da pesquisa, Debora Diniz atesta que tanto a reforma psiquiátrica do país não contemplou os hospitais de custódia como a loucura prossegue sob encarceramento para a chamada proteção social. “Passar por aquela porta é um grande risco”, alerta. Texto publicado originalmente em 14 de dezembro de 2012, no site da Unb.
Luciana Barreto
Passar pelos pesados portões de ferro de um manicômio judiciário é quase sempre um caminho sem volta. Entre muros e omissões, milhares de vidas seguem invisíveis aos olhos do Estado e da sociedade. Abandonados e anônimos, duplamente marginalizados - seja pelo estigma do transtorno mental seja pela situação delinquência -, os loucos infratores no Brasil sequer configuravam um número. É o que revela o primeiro mapeamento dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico do Brasil, que identificou 3.989 pessoas internadas nas 26 unidades do país.
Mais da metade são negros, pobres e com baixa escolaridade, homens e mulheres com epilepsia, esquizofrenia, retardo mental, transtornos afetivos, de personalidade, da preferência sexual ou devido ao uso de álcool e outras drogas. Passados 90 anos da criação dos hospitais-presídios no país, uma pesquisa inaugural traz o primeiro perfil nacional de uma população esquecida: A custódia e o tratamento psiquiátrico - Censo 2011 - estudo idealizado e coordenado pela professora Debora Diniz, do Departamento de Serviço Social da UnB (Universidade de Brasília), e financiado pelo Ministério da Justiça.
Os resultados do censo mostram tanto a vulnerabilidade dessa população quanto um cenário alarmante: um em cada quatro indivíduos não deveria estar internado; 47% estão encarcerados sem fundamentação legal e psiquiátrica; 21% cumprem pena além da estipulada em sentença; sem contar o contingente internado há mais de 30 anos, contrariando a pena máxima admitida pelo regime jurídico brasileiro – os pesquisadores encontraram 18 indivíduos nessa situação.
“A invisibilidade do louco infrator não foi rompida com as conquistas da Reforma Psiquiátrica dos anos 2000”, afirma Débora Diniz, na introdução do livro em que apresenta o estudo. A obra é o primeiro e-book da Editora da UnB, em parceria com a Editora Letras Livres. Acesse aqui.
A população que não deveria estar internada soma pelo menos 741 indivíduos dos 3.989 identificados. São homens e mulheres que dispõem ou de laudo médico atestando que seu comportamento não representa mais perigo ou de sentença judicial determinando a saída da internação. Sem contar aqueles internados sem que haja processo judicial.
“É um cenário conservador, pois não avaliamos a qualidade dos laudos médico-periciais ou os argumentos das sentenças judiciais. E se considerarmos os indivíduos internados com laudos psiquiátricos ou exames de cessação de periculosidade em atraso, são 1.194 pessoas que não sabemos se deveriam estar internadas”, explica Debora.
O censo revela ainda que 41% dos exames de cessação de periculosidade estão em atraso. Segundo Debora Diniz, o atraso médio praticado para a emissão de laudos é de 10 meses, sendo que a legislação estabelece como limite 45 dias. “Não são asseguradas as determinações legais de permanência, tampouco os laudos psiquiátricos e as decisões judiciais. Estamos diante de um grupo de indivíduos cuja precariedade da vida é acentuada pela loucura e pela pobreza, mas também diante de vidas precarizadas pela desatenção das políticas públicas às necessidades individuais e aos direitos fundamentais”, afirma a professora.
Outra conclusão do mapeamento está associada a graves irregularidades no campo legal, já que a medida de segurança vem sendo aplicada por tempo indeterminado. Dos 3.989 internados identificados, 2.838 já haviam recebido sentença judicial acompanhada de laudo psiquiátrico atestando o transtorno mental (em medida de segurança), mas 1.033 aguardavam sentença (internação temporária), o que equivale a 26% do contingente populacional enclausurado em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Além deles, 117 esperavam conversão de pena em razão de alegado transtorno mental.
Para Debora Diniz, o resultado mais importante da pesquisa foi dissociar periculosidade da doença mental. "O diagnóstico psiquiátrico não é determinante para a infração penal cometida pelo louco. O que existe são pessoas em sofrimento mental que, em algum momento da vida, cometeram infrações penais", expõe.
Pelo estudo, a periculosidade não é demonstrada pelos diagnósticos psiquiátricos nem pela trajetória criminal dos indivíduos. “Diante da realidade que se faz evidente, o Estado não pode admitir que uma entre quatro pessoas nos manicômios judiciários não deveria estar sob esse cruel regime de encarceramento. Além disso, para quase metade desse contingente a internação não se fundamenta por critérios legais e psiquiátricos”.
Para chegar aos resultados, os pesquisadores estiveram nos 26 hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico no país, analisaram os dossiês de cada internado e preencheram questionários eletrônicos com perguntas padronizadas. O pré-teste foi realizado um ano antes na unidade de custódia judiciária mais antiga do país, no Rio de Janeiro.
É a primeira vez na história que esses esquecidos anônimos são mapeados nessas híbridas estruturas de confinamento penal e internação psiquiátrica. “Ao flagrarmos um cenário atravessado por desolação e abandono, atravessado por irregularidades, necessariamente abrimos uma agenda política sobre e crime e loucura, um enfrentamento inédito de como essa questão vem sendo conduzida no país, gerando excessos e omissões”, avalia Debora Diniz. “Os resultados exigem ação imediata do Estado”, defende.
A população internada nas unidades é majoritariamente masculina, negra, de baixa escolaridade e com inserção periférica no mundo do trabalho. Em geral, são pessoas que cometeram alguma infração contra alguém da família. “Se a principal expressão é contra a família, como esperar dela apoio, suporte, acolhimento? Como a casa é entendida como um espaço de sofrimento, gerando a manifestação da loucura, resta ao Estado assumir a reinserção social e restaurar os laços comunitários dessas pessoas. É uma população altamente vulnerável, sem dúvida pessoas completamente desfiliadas da vida social”, afirma Debora.
De acordo com Wederson Santos, supervisor do estudo e doutorando em Sociologia, o censo revelou marcadores de grande vulnerabilidade social e o perfil da população internada em medida de segurança ilustra a desigualdade do país. “Esse retrato, agora explícito, certamente irá exigir do Estado políticas de assistência social, ações inclusivas, pois esses indivíduos precisam ser novamente empoderados para tocar suas vidas”, afirma, concordando com Debora Diniz quando ressalta que “o retorno para a família não é simples”.
Segundo Wederson, é fundamental uma imediata interface entre as políticas de saúde mental e de assistência social: “a responsabilidade é do Estado, já que restaurar a autonomia e os laços comunitários não é algo simples tampouco automático”.
Júlia Albuquerque, mestranda em Política Social e também orientanda de Débora Diniz, participou da coleta de dados da pesquisa, visitando 23 das 26 entidades. Ela se diz impressionada com a precariedade material dos hospitais-presídios, da dificuldade flagrada na realização dos laudos e do número insuficiente de profissionais trabalhando nas unidades. “Percebemos que essas pessoas estão mais sob a visão penal e o caráter de custódia do que sob o olhar da saúde e dos direitos humanos”, afirma.
Para a estudante de Direito da UnB, Sinara Gumieri, integrante da equipe e pesquisadora de iniciação científica orientada por Débora, “esse trabalho foi fundamental para compreender não apenas os marcos legais que orientam a problemática, mas os marcos políticos que definem uma realidade tão dramática. Sem dúvida, esses resultados abrem uma agenda política importantíssima. Esperamos que o censo dê a devida visibilidade a pessoas que até então sequer tinham sido quantificadas”.
Segundo Cássia Valéria de Castro, diretora-executiva da Anis e mestranda em Ciências da Saúde, também orientada por Debora Diniz, este foi um projeto estratégico para a promoção dos direitos humanos de populações vulneráveis. “E esta é uma das mais vulneráveis que existem hoje no Brasil. Portanto, olhar para essas pessoas é cuidar delas. O que queremos é que as políticas públicas para essa população sejam incrementadas e, consequentemente, que a justiça e a saúde passem a cuidar mais dessas pessoas”, disse a diretora.
Para Debora Diniz, esse censo configura um marco político inaugural, lançando um facho de luz sobre uma população invisível, cotidianamente silenciada e entorpecida pela tradicional coerção medicamentosa, e ainda esquecida, abandonada por um descaso histórico, além de recorrentes desmandos de ordem legal e penal.
Como conclusão da pesquisa, Debora Diniz atesta que tanto a reforma psiquiátrica do país não contemplou os hospitais de custódia como a loucura prossegue sob encarceramento para a chamada proteção social. “Passar por aquela porta é um grande risco”, alerta. Texto publicado originalmente em 14 de dezembro de 2012, no site da Unb.
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial