"Fui tragado pela violência", diz o cineasta Cristiano Burlan
Eleonora de Lucena
Ele é filho de pedreiro e empregada doméstica. Teve empregos como ajudante em obras e numa metalúrgica. Foi garçom e barman. Não completou o ensino médio. Queria ser ator e trabalhar com o cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Juntou dinheiro, foi para a Europa, mas teve o sonho frustrado: apenas conseguiu trabalhar em bares e na limpeza de cascos de iates. Desalentado, voltou ao Brasil. Com esse currículo, o gaúcho Cristiano Burlan, de 37 anos, resolveu fazer cinema. Deu certo: seu filme "Mataram Meu Irmão" ganhou o prêmio de melhor documentário brasileiro no festival É Tudo Verdade.
A obra trata da violência na periferia de São Paulo, tendo como pano de fundo a morte do irmão do cineasta. Rafael Burlan foi assassinado em 2001 aos 22 anos. Estava envolvido em uma gangue de tráfico e furtos de carro organizada por um policial no Capão Redondo, periferia da zona sul de São Paulo. Pai de dois filhos, era viciado em crack.
"Se fosse pela história da família, eu poderia estar morto. Ou preso. Não tenho orgulho disso. A pobreza e a violência não são objetos estéticos para mim. Não digo que eu era pobre e o cinema e a literatura me salvaram. Isso é um clichê", diz Burlan. Pergunto por que ele não foi tragado pela violência. O cineasta contesta. "Fui tragado pela violência, pois ela me deixou marcas indeléveis. É um fardo que eu tenho que carregar pela vida. Mas isso não me congela."
Burlan lembra dos amigos e familiares mortos violentamente - a mãe foi assassinada pelo namorado - e dos que estão ou passaram pela prisão. Foi com a mãe que Burlan aprendeu a gostar de ler e de ver filmes. Na primeira vez em que o então garoto entrou numa sala escura, viu Os Trapalhões na Serra Pelada (1982). Depois, ele passou a frequentar a biblioteca pública de Santo Amaro. Ele lia Dostoiévski e Rubem Fonseca. Participou de oficinas de teatro.
Enquanto o pai trabalhava como pedreiro na USP, ele vendia doces nas faculdades. Descobriu as sessões de cinema na ECA (Escola de Comunicações e Artes) e começou a frequentá-las. Viu os clássicos. Lendo a Folha de São Paulo, Burlan soube que uma escola de cinema estava sendo aberta em Curitiba, a AIC (Academia Internacional de Cinema). No dia seguinte, largou o emprego de garçom e pegou um ônibus para o Paraná.
Sem dinheiro para o curso, ganhou uma bolsa. Com o equipamento da escola, fez seu primeiro curta em 2004. É sobre um homem esperando uma mulher que nunca chega. Depois de estudar por dois anos, virou professor da AIC em São Paulo.
"Mataram Meu Irmão" levou um ano para ser feito e envolveu dez profissionais. O dinheiro da produção saiu do bolso do cineasta e de amigos. No total foram gastos R$ 10 mil. A premiação no festival deu a Burlan R$ 110 mil, que ele pretende investir na produção de mais filmes e na ajuda aos sobrinhos.
O reencontro emocionado com esses sobrinhos - filhos do irmão assassinado - foi o momento mais tenso na produção do filme. Na cena, Burlan se mostra e chora com os parentes. A família ainda não viu o longa, e ele teme pela reação que terá ao ver as fotos do corpo de Rafael. Nas filmagens, o cineasta chegou a cruzar com o assassino do irmão. Ele, que é traficante na região, carregava armas pesadas. Amanhecia no bairro do Capão Redondo, e o trabalho foi interrompido. O diretor temeu pela segurança da equipe.
Ele fez pequenas incursões na publicidade, mas não foram bem-sucedidas. "Abandonei a última que tentei fazer. Cheguei de ônibus com o meu celular de R$ 70. As pessoas não entendiam como eu não tinha carro e iPhone. Se você não tem essas coisas, se torna uma aberração." Após fazer um filme em homenagem ao pai (Construção, de 2007), Burlan planeja fazer uma obra sobre a mãe. Articula também um projeto multimídia sobre a Coluna Prestes (1925-1927).
Critica a "estética da pobreza", que, segundo ele, "vende para festival internacional". Mas ele não está mergulhado nisso? "Sim, completamente. Mas não me orgulho de ter contato com a violência. Se pudesse escolher, teria tido uma vida diferente."
Burlan dirigiu os longas de ficção "Corações Desertos" (2006) e "Sinfonia de um Homem Só" (2012) e os documentários "O Homem da Cabine" (2008) e "Cuipiranga" (2010). Texto publicado originalmente em 19 de abril de 2013, no jornal Folha de São Paulo, caderno Ilustrada.
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