sábado, 11 de maio de 2013

Negros braços salvadores

Lee Siegel

"Entendi que tinha alguma coisa errada quando uma menina branca bonitinha correu para os braços de um preto". Essas foram as palavras de Charles Ramsey, de Cleveland, que, com outro chamado Angel Cordero - que não fala inglês, portanto não recebeu a menor atenção da imprensa -, salvou as três mulheres mantidas em cativeiro por muitos anos na casa ao lado da sua.
As entrevistas que Ramsey deu aos repórteres, e particu-larmente sua aparição no programa de Anderson Cooper na CNN, de grande audiência nos Estados Unidos, imediatamente se tornaram virais na internet. O país todo fala nele. Foi proclamado herói. O McDonald’s teria entrado em contato com ele porque contou que comia um Big Mac quando ouviu os gritos de Amanda Berry, a moça que logo depois salvou.
Talvez ninguém admita, mas o que fascina em Ramsey é o fato de ele ser do tipo que faria muita gente mudar de calçada se o visse caminhando em sua direção. Ramsey está absolutamente certo quando fala do efeito assustador de sua raça, e de seu lugar na sociedade.
Nas entrevistas, particularmente na longa conversa que teve com Anderson Cooper, ele parece uma pessoa agressiva, raivosa, até meio maluca. Fala demais, de maneira agitada, como se estivesse prestes a perder a calma com o interlo-cutor. Exprime-se no pesado jargão dos negros, dispensando a gramática formal. Às vezes, se o entrevistador faz uma pergunta que Ramsey acha boba ou absurda, ele dá um passo atrás com uma espécie de espanto grosseiro, como para dizer ao interlocutor: "Você é completamente idiota. Não enche!". 
Já Ariel Castro, o homem de 52 anos acusado de sequestrar as mulheres, mantê-las amarradas e acorrentadas e violentá-las repetidamente, parece o tipo de indivíduo com o qual a gente pararia alegremente para conversar. Sua página no Facebook mostra um homem imbuído de valores cristãos, sensível às belezas simples da vida. "Hoje acordei com o chilrear de um cardeal", escreveu em um post, "Venha, venha, primavera!".
Ariel dirige um ônibus escolar. Toca baixo numa banda latina local. Em outra postagem, deu os parabéns à filha de 22 anos pelo nascimento do filho, observando feliz que era avô pela quinta vez. "Adoro vocês!", escreve aos netos. Quatro dias antes de as três mulheres fugirem, com a menina de 6 anos que ele teve com uma delas, Ariel escreveu: "Milagres realmente acontecem. Deus é bom".
Entretanto, Ramsey revelou-se um homem bondoso, disposto a arriscar a vida para salvar um ser humano. Por baixo de uma aparência profundamente enganadora, ele parece ter o caráter de uma alma nobre. Quando Cooper observou que a maioria das pessoas teria preferido não se envolver e não teria arrebentado a porta para libertar a mulher que gritava, Ramsey disse: "Mano, sou cristão, americano, igual a você. Temos o mesmo sangue, vestimos as calças da mesma maneira. Uma hora a gente tem que deixar de ser covarde, de ‘não me meto na vida dos outros’. Tem que esquecer isso por um minuto".
O trecho mais tocante da entrevista foi quando Cooper perguntou a Ramsey como se sentiu ao descobrir que foi vizinho de Ariel Castro durante um ano e não teve conhecimento dos horrores que ocorriam no interior da casa ao lado. Ramsey respondeu que sempre teve dificuldade para dormir porque não tinha dinheiro. Agora, afirmou, não consegue dormir porque é atormentado pelo fato de ter estado tão perto de toda aquela crueldade e não ter feito nada a respeito. Ramsey tem a consciência ultrassensível de um santo.
Ao mesmo tempo, o piedoso Ariel, pessoa tão agradável, revelou-se - caso as acusações contra ele se confirmem - a personificação do mal. A ideia outrora controvertida de Hannah Arendt da "banalidade do mal", como ela chamou, já é antiga, confirmada em livros como Ordinary Men: Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland, de Christopher Browning. 

Mas a aterradora noção de que homens comuns cometem atrocidades durante o dia e à noite voltam para casa e beijam mulher e filhos sofreu uma transformação igualmente aterradora. Os nazistas - assim como os sequazes de Stalin e do Khmer Vermelho e os assassinos genocidas na Bósnia, Ruanda e Sudão - faziam parte de uma massa de criminosos. Sua dupla existência celerada tinha o respaldo de toda uma cultura enlouquecida. 

Mas o que estamos vendo agora nos Estados Unidos, com certa frequência, ao que parece, é o surgimento de uma espécie de pessoas que conseguem viver uma existência dupla, cruel e perversa, sem a justificativa distorcida de fazerem o que todos fazem - até os "melhores" cidadãos.

Os sequestradores e torturadores de Amanda Berry, Gina DeJesus e Michelle Knight, e de Elizabeth Smart e Jaycee Dugard, e muitas outras jovens que foram libertadas nos últimos anos, agiram sozinhos ou com um ou dois cúmplices, geralmente membros da família. Sua vida exterior e as atrocidades internas estavam nitidamente separadas, como um quintal é separado do outro por uma cerca branca. 

Esta é, de várias maneiras, a era da existência dupla. A internet tornou a vida dupla algo normal, parte da rotina diária de muitas pessoas. Para a maioria que, como nós, envia mensagens, faz atualizações, comunica-se pelo Twitter e por blogs, com pseudônimo ou nome fantasia, isso não muda muito a maneira como nos relacionamos com os outros.
Mas, para um número cada vez maior, o ambiente que permite às pessoas atacarem outras brutalmente online e depois, desconectado, sejam agradáveis e gentis, é o mesmo que permite a essas pessoas praticarem o mal com um sorriso no rosto. Talvez para elas, sequestrar alguém e manter sob seu poder seja apenas uma extensão patológica de fazer pornografia online, perseguir alguém online ou difamar online.
Em todos esses casos, alguém tem a ilusão de manter outro totalmente sob seu poder. Alguém cultiva a ilusão de que as pessoas que conhece online são prisioneiras de sua imaginação. Mas esse é o lado sombrio da nova existência dupla. O lado bom é que, sob a aparência mais comum, também há almas heroicas, nobres, como Charles Ramsey e seus negros braços salvadores. Tradução de Anna Capovilla. Texto publicado originalmente em 11 de amio de 2013, no jornal O Estado de São Paulo.

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