sexta-feira, 17 de maio de 2013

Piaget

Fernanda Torres 

Pirro de Élis, sábio grego que visitou o Oriente na companhia de Alexandre, julgava ser impossível conhecer a verdade absoluta do que quer que seja. Pirro fundou a doutrina do ceticismo, contrária ao dogmatismo. Toda certeza é perigosa, bem faz o filósofo em desconfiar delas. Para uma mãe, no entanto, é impossível atingir a placidez dos céticos. 
A maternidade é irmã da angústia. O antídoto mais comum para a impotência perante o destino, o acaso e as intempéries é a religião. Como alternativa, Pirro sugere um estado de indiferença consciente: a ataraxia. A pequenez humana requer serenidade. Pirro deve ter aprendido sobre o desapego com os orientais, era homem e não teve filhos. 
Eu sigo engalfinhada com os dilemas insolúveis, sou mulher, ocidental e mãe de dois. Teimo no ideal. Ouço os que defendem o ensino tradicional e concordo com os catedráticos, a disciplina é a ponte para o saber. Troco duas ideias com os construtivistas e me convenço de que a cartilha repetida à exaustão é um atentado à criatividade infantil. O espírito investigativo é a porta do conhecimento.
À eficácia relativa das diferentes correntes de educação soma-se a pressão da fluência no inglês. Colégios bilíngues forjam bebês poliglotas, provando que o domínio de um idioma exige prática intensiva na infância. Corra e garanta vaga. A comunicação é a ferramenta do futuro. Mas o porém de criar um ser alheio à própria cultura e dotado de um português de segunda invade a alma. E volto à estaca zero da incerteza sem fim.
Venho de uma família de artistas autodidatas, franco-atiradores guiados pelo instinto. São péssimos exemplos. Dos parentes, só um primo fez faculdade. Como se não bastasse a falta de acadêmicos no DNA, sou cria de Piaget, ou do que aqui se convencionou chamar de método Piaget. Quando eu era alegre e jovem, o construtivismo traduzia os valores contrários à nefanda censura. A escola experimental prometia dar aos alunos a liberdade negada aos pais.
Quarenta anos depois, Steven Pinker condena Piaget com a mesma ferocidade com que desdenha de Oscar Niemeyer. Em um discurso disponível no site da TED (fundação privada sem fins lucrativos dedicada à disseminação de ideias), o psicólogo americano, personificação do pragmatismo científico, garante que não há apuro sem treino árduo. 
Creio na ciência e no sacrifício, mas o argumento do cientista remete às mães chinesas, fábricas de infantes virtuoses, mas donas de uma severidade que põe em xeque o valor do gênio engendrado a fórceps. Em "Bouvard e Pécuchet", Gustave Flaubert denuncia as fragilidades da ciência e da arte, fazendo, dos dois personagens centrais, cobaias voluntárias dos compêndios de saber do século 19. Nada escapa: a agricultura, a arqueologia, a política, a literatura, a religião, a medicina.
No capítulo dedicado à educação, os copistas tornam-se preceptores de um casal de irmãos rebeldes. Convencidos de que a boa formação é a única saída para o descaminho da humanidade, aplicam as inúmeras teorias educacionais nos pivetes. Nenhuma age sobre a índole das pestes. Após o fracasso com a matemática, a gramática, a música, a história e a geografia, desistem da experiência ao dar com os pupilos no fogão, cozinhando o gato da casa em água fervente.
Flaubert era cético. E cínico. Morreu de sífilis, contraída nos bordéis que frequentou com afinco, não casou e nunca foi pai. Mais uma vez, é fácil exercer a descrença quando não há crias por perto. Fui devota de Flaubert na juventude. Hoje, impedida pelo amor materno de ser niilista e mordaz à sua maneira, leio "Os Miseráveis" e invejo o positivismo romântico de Victor Hugo.
A Revolução Francesa é mãe da eloquência de Hugo. Flaubert a admira, embora confesse em "A Educação Sentimental" que não arriscaria uma unha por suas bandeiras.
O mundo anda mais para Flaubert do que para Hugo. Menos dado a grandes causas e mais afeito à ataraxia estatística. O espírito demolidor do francês é mais fiel à crise moral do presente. Talvez a dificuldade em definir a escola de meus rebentos seja reflexo desta dualidade. Quando nasci, a ideologia fundada em 1798 ainda guiava a política, a economia e a educação. Não mais. Texto publicado originalmente em 17 de maio de 2013, no jornal Folha de São Paulo.

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