domingo, 27 de março de 2011

O senhor da guerra gosta de crianças

Teleanálise
Malu Fontes
Mais por dor de cotovelo, causada pelos elogios feitos pelo presidente dos Estados Unidos ao Brasil após oito anos de gestão de Lula, e menos por acreditar que palavras nesse tipo de visita a um país amiguinho devem mesmo ser mais assertivas do que foram, a oposição ao Governo Lula/Dilma bem que tentou desqualificar a passagem de Barack Obama pelo Brasil. Alguns veículos de imprensa de plumagem alinhada ao tucanato, ainda inconformados com a derrota nas urnas e agora assistindo o esfacelamento da oposição com a criação de um novo partido de apoio a Dilma, o PSD, chegaram a escrever em suas páginas que a vinda de Obama não passou de uma visita familiar de lazer no fim de semana com direito a filhas, mulher, sogra, comadre e que tais.
É verdade que a desqualificação da visita e das falas de Obama em seus discursos oficiais no Brasil foi um fenômeno muito mais explorado nos grandes veículos de imprensa escrita. A televisão brasileira e seu telejornalismo, sobretudo a TV aberta, não é boba nem nada nem tem tempo a perder quando há diante das lentes um espetáculo e tanto, ou seja, a visita do presidente da nação mais rica e poderosa do mundo e todos os salamaleques que o rodeiam, ainda por cima tratando-se de Barack Obama, cujo carisma e potencial midiático vão além do poderio dos Estados Unidos. A TV tratou-o como um rei entre súditos e deu-lhe todo o espaço possível e mais algum.
PANDEIRO - Quanto à imprensa do mundo e sua respectiva televisão, não se pode dizer o mesmo. O fato de Obama ter passado um fim de semana no Brasil com family e sogra, o fato de Michelle ter trocado de roupa trocentas vezes, para delírio das editoras de moda, pouco importou aos olhos dos veículos de imprensa mais importantes do mundo. A passagem de Obama pelo Brasil entrou mesmo para a história das relações políticas internacionais porque foi daqui, entre a apresentação de um grupo de capoeira ali, um pandeiro tocado para Michelle e filhas acolá e uma embaixadinha de mentira com os meninos da Cidade de Deus que Obama, um Prêmio Nobel da Paz, um homem culto que adora crianças, autorizou seu país a mergulhar na terceira guerra da qual participa simultaneamente, desta vez contra a Líbia.
Por linhas tortas, todos os cenários do mundo e das sociedades escancaram aos otimistas e aos puros que nunca fez sentido acreditar no maniqueísmo de um mundo moral bipolar dividido entre os muito bons e os muito maus. Veja-se que o presidente mais boa praça e mais família dos Estados Unidos até aqui, e diga-se, de novo, pela importância do título, um Nobel da Paz, o carismático e bem formado primeiro afro-descendente a ocupar o cargo mais poderoso do mundo, o mesmo que fez as criancinhas brasileiras chorarem de emoção só por terem sido tocadas por ele no Palácio do Planalto, é o mesmo que, num telefonema protocolar autoriza porta-aviões entupidos de mísseis a cuspir fogo contra as tropas aliadas do caricato Muamar Kadaffi. Contra elas e somente contra elas, as tropas de Kadaffi, e sempre em nome da proteção do povo líbio. De novo, um presidente dos Estados Unidos incorporando a figura do chefe da polícia do mundo.
BUNGA-BUNGA - Só mesmo quem acredita no maniqueísmo de um mundo dividido entre bons e maus consegue crer na precisão cirúrgica de máquinas de guerra que disparam a dezenas de quilômetros de distância de seus alvos e juram por Deus, Alah e os anjos que nenhum alvo civil, nenhuma criança ou mulher serão atingidos, só inimigos maus. Ah, tá. Do Brasil, Obama autorizou o ataque à Líbia, com 110 mísseis lançados de navios e submarinos situados nas águas do mar mediterrâneo. Sílvio Berlusconi, o presidente da Itália, se tivesse juízo, já teria fugido de suas festas bunga-bunga e estaria escondido embaixo de uma cama blindada, pois, dos países aliados contra Kadaffi, a Itália é o que corre mais riscos reais, por estar pertinho da Líbia. Além disso, grande parte das armas que o ditador líbio acumulou nesses anos todos foi vendida pela própria Itália.
ESGOTO - Na TV local, a nota dissonante perante o discurso ecológico e politicamente correto da proteção ao meio ambiente que vigora em tudo, e com uma capacidade e tanto para estragar até mesmo os irretocáveis filmes publicitários da Bahiatursa, foi uma matéria veiculada pela TV Bahia (Globo), feita pela jornalista Georgina Maynart, com cenas capazes de assombrar até mesmo os mais brutos.
No Dia Internacional da Água, Salvador deu de presente aos telespectadores uma imagem medonha: uma cachoeira de esgoto, literal e caudalosa, gerada por toda a sorte de abandono dos poderes públicos em relação ao Parque São Bartolomeu e à Bacia do Cobre, situada entre diversos bairros da periferia da cidade. Como se não bastasse a ocupação irregular dos arredores da Bacia e a poluição de todo o seu manancial, uma obra pública de saneamento no bairro de Ilha Amarela canaliza o esgotamento sanitário do local para escorrer justo para a... Bacia do Cobre. A obra conduziu o esgoto para o curso natural da água e encorpou a cachoeira de esgoto fétido. De presente de aniversário, Salvador agradeceria a iniciativa de algum poderoso de plantão que devolvesse vida e limpeza às águas do manancial do Cobre e do Parque.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 27 de março de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

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