Ninguém pra julgar
Elieser Cesar
Revista Metrópole n. 08, janeiro de 2008.
Falta de jurado deixa banco dos réus vazio em Salvador
Desse jeito o bandido agradece. Se estiver em liberdade, comemora com a mesma intensidade da queima de fogos de artifícios do Reveillon e, recalcitrante, pois despido de sentimentos nobres, corre acelerado para cometer novos crimes, certo de que a Justiça, caminhado em ritmo de tartaruga, dificilmente o alcançará tão cedo, se um dia vier pegá-lo. Afinal, criminoso empedernido não pensa que será levado às barras do tribunal. Recentemente, em Salvador, houve pelo menos um caso em que o acusado de homicídio pôde, sim, festejar a lentidão da Justiça. A 1ª Vara do Júri, umas das duas existentes na comarca da capital baiana, foi obrigada a cancelar um julgamento por falta de jurado. Com isso, a cadeira mais indesejada do Salão do Júri, a do réu, também ficou vazia.
E deverá continuar vazia, ao menos até março próximo, nesse caso específico: o julgamento do professor de capoeira José Venceslau Brito, que matou, com duas facadas nas costas, o eletricista e ex-presidente da associação dos Moradores do Acupe de Brotas, Mário da Silva Brito, durante uma discussão tola. Até lá, Venceslau, que aguarda o julgamento em liberdade, por ser réu primário, poderá brincar tranqüilamente o Carnaval, enquanto a família da vítima convive com o luto de uma eterna Quarta-feira de Cinzas.
Porém, convém cautela àqueles que se preparam para sentar no banco dos réus, pois seria precipitado se falar “numa crise de jurados” nas duas Varas do Júri de Salvador. Claro que muita gente não gosta de ser obrigada a participar, como jurado, das longas sessões do Júri, como há também quem deteste ser mesário no feriado das eleições. Mas, em ambos os casos, não há muito o que fazer, uma vez convocado, tem que ir mesmo, sob pena sanções legais. Algumas pessoas temem ficar marcadas por aqueles que ajudaram a condenar. Algumas pessoas temem ficar marcadas por aqueles que ajudaram a condenar. Então melhor seria ficar em casa mesmo, pois, como diz o velho ditado, "boa romaria faz quem em casa fica em paz".
Atualmente, existem cerca de 6 mil processos acumulados em cada uma das duas Varas da capital (na Europa, por exemplo, nenhum juiz pode acumular mais de 300 processos). Enquanto, isso, os homicídios se multiplicam na cidade (houve 967 em 2006 e, em 2007, 1.337), o que, em tese, representa mais trabalho para o Júri, a longo prazo.
O juiz titular Cássio Miranda, que preside a 1ª Vara do Júri de Salvador, a mesma levada a adiar o julgamento do professor de capoeira, garante que não existe “crise de jurados”. “O que acontece”, afiança, "é uma conjunção de dificuldades, a exemplo do acúmulo de serviço a cargo dos Oficiais de Justiça, deficiência no transporte para cumprimento das diligências (há apenas uma Kombi para atender as duas Varas do Júri), pauta exacerbada de julgamentos e o final do ano, que dispersa as pessoas".
Para o juiz, a melhor saída para a prestação jurisdicional com a celeridade desejada pela sociedade seria a criação de, pelo menos, mais duas Varas do Júri na Comarca de Salvador.
O Tribunal de Justiça da Bahia também defende a tese de Miranda e, ao enviar, este ano à Assembléia Legislativa a proposta da nova Lei Orgânica do Judiciário, dentre outras propostas, contemplou a duplicação das Varas do Júri na capital. Contudo, os deputados estaduais aprovaram a criação de apenas mais uma Vara. Conforme Cássio Miranda, “isso é ainda insuficiente para o enfrentamento da situação atual, pois, seria razoável ter uma visão sobre o futuro, o que não se concretizou”. O magistrado lembra que Salvador, a quarta capital mais populosa do País, de acordo com o último censo do IBGE, tem o mesmo número de Varas do Júri do que Manaus (AM) e Porto Velho (RO), cuja população (de quase 400 mil habitantes) é menor do que a de Feira de Santana, o maior município do interior da Bahia. Só para efeito de comparação, Fortaleza, ainda menos populosa do que a capital baiana, conta com oito Varas do Júri.
Depois de muita reclamação, a Comarca de Salvador conseguiu a designação de dois juízes auxiliares, um para a 1ª, outro para a 2ª Vara, presidida pelo juiz Vilebaldo José de Freitas Pereira. As dificuldades levam as duas Varas a realizarem apenas dois júris por semana, quando o ideal seria um por dia.
A máxima que diz que “a justiça só funciona para o rico” se aplica para explicar o porquê da demora nos julgamentos. Como menos de 30% das vítimas de homicídios são de classe média ou alta e a maioria é de gente pobre, em geral da periferia, que não tem o mesmo poder de cobrança e mobilização dos mais abastados financeiramente, os processos simplesmente se arrastam.
PEDRA DE TOQUE - Com 516 atuações no Júri e três décadas de experiência em tribunais, o advogado criminalista Alfredo Venet Lima, de 54 anos, isenta as duas Varas do Júri de responsabilidade pela lentidão com que os acusados chegam ao banco dos réus. Para ele, a Vara do Júri sempre foi “a pedra do toque” do Judiciário baiano, como reconhece a maioria dos promotores de Justiça e criminalistas. Venet defende não somente a criação de outras duas Varas na comarca de Salvador, como também de mais um Salão do Júri.
Na opinião dele, cada Vara deveria ter, no mínimo, seis serventuários, e o Estado deveria oferecer mais defensores públicos para aqueles que não podem pagar os honorários de um advogado. Venet Lima assegura que é comum se adiar julgamentos, já que são sorteados no mínimo, 15 jurados para compor o quadro dos sete que decidirão a sorte do réu e, se um único deles não comparecer, não tem Júri.
"Não existe crise de jurados, pois, o jurado tem que comparecer independentemente de qualquer situação", descarta o criminalista Abdon Abbade dos Reis. De acordo com Abbade, o que prejudicou os julgamentos previstos para o final do ano foi a realização, em outubro, de um mutirão, quando chegaram a ser realizados quatro júris por semana. "Assim, o jurado ficou sem exercer as suas atividades normais de cidadão", justifica o advogado. Com mais de 500 julgamentos no currículo, Abbade também advoga um melhor apoio logístico às duas Varas do Júri, com um maior número de serventuários atendendo a cada uma delas de forma independente.
Agora, já pensou num Júri sem jurado? Seria a farra dos bandidos. Neste caso, lá nas estepes geladas da Rússia, o romancista Fiódor Dostoiévski teria que mudar o nome de seu clássico universal para "Crime sem castigo".
O CALVÁRIO FORENSE DE MARIA JOSÉ
Aos 51 anos de idade, a funcionária pública Maria José Faustino da Silva é uma senhora com sede, com muita sede de justiça. Viúva do eletricista Mário da Silva Brito, morto a facadas, há quase dois anos pelo professor de capoeira José Venceslau Brito, morto a facadas há quase dois anos pelo professor de capoeira José Venceslau Brito, por causa de um entulho jogado num terreno, Maria José já compareceu 69 vezes ao Fórum na tentativa de levar, finalmente, para o banco dos réus, o assassino do marido.
Desde a tragédia que se abateu sobre ela e o casal de filhos – e que a faz tomar tranqüilizantes para suportar seu calvário –, Maria José segue sua via-crúcis pelo Fórum Ruy Barbosa, tentando mobilizar entidades de defesa dos direitos humanos para a causa da família e encontrar advogados dispostos a levar o acusado a julgamento.
Até chegou a confeccionar cartazes, faixas e camisetas estampadas com a fotografia do marido clamando por justiça. Em uma das últimas vezes em que foi ao Fórum, soube que o juiz Cássio Miranda teve que adiar o julgamento de Venceslau por falta de jurado. Mas não desistiu de sua luta quase solitária. “Voltarei quantas vezes precisar. Esse julgamento vai acontecer, para que possamos ter paz. Esse criminoso (Venceslau Brito) deixou uma mulher viúva, dois filhos órfãos, irmãos sem irmão, amigos sem o amigo. Tem que pagar por isso”, desabafa.
Da morte do marido, ela extraiu uma lição: “Aprendi que a Justiça é mãe do assassino e madrasta da vítima”. Ela, agora, espera o julgamento para março.
VAI PRO TRONO OU NÃO VAI?
Ô, gente desconfiada é jurado! Também pudera. Como contribuem para condenar ou absolver réus (como aquela tarde do poema de Baudelaire, que desce sobre a cidade, “a alguns trazendo angústia, a paz a outros trazendo”), o jurado é uma cabra naturalmente desconfiado, que prefere ficar nos bastidores, à sombra dos tribunais, do que se expor aos holofotes dos julgamentos mais midiáticos. Afinal, bandido é um bicho vingativo e seguro morreu de velho.
Para se compor um Júri, parte-se de um cadastro de cidadãos brasileiros natos ou naturalizados, maiores de 21 anos e com idoneidade moral comprovada feito pelo juiz-presidente do Júri. O magistrado solicita as indicações de nomes que preencham esses requisitos a entidade de classe, sindicatos e repartições públicas. São alistados de 300 a 500 jurados nas comarcas com mais de 100 mil habitantes, e de 80 a 300 naqueles com menor população. Desse bolo são sorteadas as sete criaturas de Deus que ficarão horas e horas ouvindo discursos inflamados de doutos jurisconsultos e lamúrias de parentes das vítimas e dos próprios réus.
Por isso, se seu chefe começar a fazer perguntas tipo como “Você freqüenta a igreja? Você é um homem de família? Você já fumou maconha?”, fique atento. Você pode estar sendo sondado para compor um Júri Popular.
Além de muita falta de sorte, o jurado tem que ter muita paciência para aturar dezenas de horas de um julgamento de homicídio ou latrocínio. O professor e bancário Raul Carvalho Lima, de 55 anos, é uma desses jurados lacônicos. Dizendo-se disposto a participar de um julgamento sempre que convocado, ele resume sua experiência de 12 anos de Júri: “Aprendi a ser criminalista sem querer”.
Mais falante, Nivaldo dos Santos Silva, de 66 anos, soube tirar proveito de seus 15 anos de jurado. Acabou se formando em Direito, mas descarta atuar como criminalista. “Pode ver. Os criminalistas andam cheios de guarda-costas. Lidar com o tipo de gente que eles lidam não é bom. Eu prefiro não ganhar esse dinheiro”, esconjura.
Ele lembra que, certa vez, foi intimado na véspera de um julgamento e teve que cancelar todas as suas atividades agendadas para o dia seguinte. Resultado: cansou daquela vida de jurado e acabou conseguindo sair dela. Hoje, atua em causas cíveis e trabalhistas. De réu, quer distância, e de jurado, nem os dos programas de calouros.
O JÚRI
O Júri foi instituído em 18 de julho de 1822, por decreto de Dom Pedro I, para julgar apenas os crimes de imprensa. Era composto por 24 jurados. Dois anos depois passou a integrar o Poder Judiciário. A competência para julgar crimes de homicídio, infanticídio e aborto foi estabelecida pelo Código de Processo Penal, em 1941.
Uma vez convocado para o Júri, já era. A presença é obrigatória e sua recusa implica em sansões como a perda dos direitos políticos e a aplicação de multa. Os coroas com mais de 60 anos estão livres do perrengue. Também são impedidos de servir ao mesmo Conselho de Sentença (corpo de jurados em juridiquês) marido e mulher, ascendentes e descendentes, sogro e genro ou nora, irmãos, cunhados, tio e sobrinho, padrasto, madrasta e enteado.
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