terça-feira, 11 de março de 2008

Comunidade e sociedade

Antonio Cicero Folha de São Paulo, sábado, 08 de março de 2008 – Ilustrada Família, pátria, tradições e religiões foram, de fato, atropeladas pelo sistema capitalista EM ENTREVISTA recente à “Nouvel Observateur”, Edgar Morin explica por que, embora já conhecesse a natureza totalitária do regime soviético desde 1948, só saiu do Partido Comunista Francês quando expulso, em 1951: "Eu tinha uma necessidade psicopatológica de amor, de fraternidade, de comunidade e não ousava romper o cordão umbilical".Amor, fraternidade, comunidade: isso me lembra a definição de "comunidade" do economista alemão Werner Sombart: "União [...] cujo laço é livre de tudo o que é estrangeiro, de toda finalidade prática, de toda negociata, de toda racionalidade, de todo caráter terrestre, para se fundar exclusivamente no amor". Nesse contexto, a palavra fraternidade só não ocorre por acaso, pois estaria em casa. Pois bem, essa definição se encontra no livro "Socialismo Alemão" (1934), em que Sombart flerta com o nacional-socialismo. Essa definição se baseia, é claro, na famosa oposição, vital para a sociologia clássica alemã, entre "Gemeinschaft" e "Gesellschaft", isto é, entre comunidade e sociedade.A comunidade supõe encontrar sua origem na grande família, que se estende até a nação ou a "pátria" e tem por horizonte a religião positiva, herdada dos antepassados. Os membros da comunidade, articulados hierarquicamente de modo pretensamente orgânico e natural, crêem cultivar entre si relações pessoais e cooperativas, enraizadas numa cultura particular e tradicional. A própria palavra "cultura", aliás, liga-se etimologicamente ao trabalho com a terra e ao culto religioso. Já a sociedade tem como protótipo a grande cidade. Nela, os indivíduos se agregam de modo mecânico e arbitrário e tendem a se relacionar de maneira impessoal e contratual. Ela tem como horizonte o princípio racional, formal e negativo segundo o qual a limitação da liberdade de uma pessoa não é lícita senão enquanto necessária para tornar essa liberdade compatível com igual liberdade alheia. Tal é o princípio universal da civilização. Na sociedade, fora dos círculos familiares restritos, as relações pessoais de caráter comunitário que tendem a prevalecer são aquelas em que cada um ingressa voluntariamente, e não aquelas de que cada um participa a despeito de sua vontade, como as de parentesco e vizinhança. Hoje, a internet leva mais longe esse progresso das relações societárias. O internauta é capaz de ignorar os seus vizinhos reais para estabelecer, num lugar virtual, relações comunitárias com pessoas que nunca viu diretamente, mas que, do outro lado do mundo, tenham o mesmo interesse pontual que ele. Evidentemente, o mundo moderno se identifica com a sociedade. A família, a pátria, as tradições, as religiões foram, de fato (como comemoram Marx e Engels no "Manifesto Comunista"), atropeladas pelo capitalismo. Entretanto, essas instituições e/ou mitos do passado não morreram, e permanece entre muitos a nostalgia por uma época em que o mundo, constituído por comunidades mais ou menos fechadas, não tendia à sociedade aberta. Para tais nostálgicos do "ancien régime", a sociedade desenraizada, cada vez mais composta de indivíduos hedonistas, representa o ápice da desagregação, da decadência. Na Alemanha, o sonho reacionário da comunidade nacional unida por tradição, sangue, terra e língua foi cultivado pelo nazismo, que, paradoxalmente, não hesitou em usar a mais moderna tecnologia para tentar realizá-lo. Não admira que, em oposição ao individualismo "burguês", o nazismo glorificasse a guerra, em que os indivíduos são capazes de morrer pela comunidade, confirmando que esta é a verdadeira substância e aqueles, meros acidentes. Para Sombart, a era do capitalismo e do socialismo proletário chegara ao fim com a instauração da comunidade nacional-socialista. Hoje, a mesma glorificação da morte em nome da comunidade - agora mais religiosa do que nacional - na guerra contra o melhor da modernidade, que é a sociedade aberta, vigora entre os defensores da Jihad. Por outro lado, aproveitando o ataque terrorista de fundamentalistas muçulmanos, o governo Bush também promoveu a guerra e, em nome dos valores comunitários do patriotismo e do cristianismo evangélico, fez tudo o que pôde para solapar os fundamentos legais da sociedade aberta e dos direitos individuais nos Estados Unidos. Hoje, sabendo a que podem levar tais delírios reacionários, não temos desculpa para ignorar a ameaça que ainda representam. Temos a responsabilidade de lutar contra eles onde quer que se manifestem. Voltarei a Edgar Morin.

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