sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

As imagens e seus usos

Malu Fontes
A Tarde, domingo, 17 de fevereiro de 2008
TELEANÁLISE
Desde o Carnaval, em diferentes programas jornalísticos de sua grade, a Rede Record vem exibindo uma matéria feita durante o Carnaval de Salvador pela jornalista Cristina Miranda. O tema é uma sucessão de agressões físicas flagradas pelas câmaras da emissora em diferentes pontos do circuito da festa. Há de tudo: foliões massacrando outros foliões com murros e em bandos, seguranças de bloco agredindo com vontade e o mais grave: policiais socando, esmurrando e distribuindo tapas no rosto contra alguns foliões que não estavam fazendo nada demais, apenas passavam no lugar errado, na hora errada. Obviamente que em uma cidade na qual o Carnaval é o principal cartão postal vendido ao turismo nacional e internacional, o desejo de autoridades, organizadores e empresários do setor é tudo, menos cena de violência. O que se quer ver veiculado são tão somente imagens que corram o mundo dando conta da festa feita de 'muita paz e gente bonita', a sucessão dos tradicionalmente repetitivos 'encontros históricos' sobre os trios elétricos e a imagem da top model Naomi Campbell soltando pomba branca do alto dos camarotes. Ironias à parte, antes de soltar pomba branca em Salvador, a modelo inglesa havia soltado a franga e todos os demais bichos em São Paulo contra um dos editores da Vogue Brasil, a quem não agrediu apenas pela intervenção da turma do deixa disso. BÁRBAROS - Nesse cenário, a cada exibição da matéria de Cristina Miranda em rede nacional, não foram poucos os que argumentaram que a veiculação era uma estratégia manipuladora, orquestrada previamente, com intenções políticas escusas para desvirtuar a beleza da festa, mostrar a cidade sob a ação de bárbaros neo-medievais e tudo isso com um objetivo espúrio: favorecer a campanha do pré-candidato da Record (leia-se o império da Igreja Universal do Reino de Deus – IURD), à Prefeitura de Salvador, o apresentador de televisão e comandante em chefe do programa Balanço Geral, Raimundo Varela. A idéia seria simples: mostrar uma cidade sem ordem para melhor vender ao eleitor o de sempre, um candidato de primeira viagem travestido de salvador da pátria. Nesse disse-me-disse, algo precisa ser lembrado. Naturalmente, o Carnaval de Salvador não é feito apenas de violência. Entretanto, não se pode negar que a violência está sim, e naturalmente, presente na festa. As imagens da Record, desse modo, são, sim, registros absolutamente legítimos de fatos reais, do cenário multiforme que compõe a festa. Ou seja, não há manipulação de imagens, montagem desonesta ou invenção. Quem aparece ali apanhando ou batendo, apanhou de verdade e bateu de verdade. Não se trata de personagens nem tampouco de montagens. E cada um mostra o que quer e vê o que quer. Vale dizer que vive-se em um tempo em que uma imagem vale mais para o púbico do que as estatísticas que dão conta da diminuição da violência no Carnaval. E, paradoxalmente, tanto estatísticas como imagens dizem verdades. FIM DE CARREIRA - Quanto à Polícia, quem nunca flagrou policiais no Carnaval distribuindo tapas na cara de pretos pobres? E, infelizmente, nada mais esperado que casos de violência em uma festa em que cerca de dois milhões de pessoas estão nas ruas, muitas delas alcoolizadas e armadas, em um cenário de discriminação e apartheid socioeconômico explícito e em uma cidade onde mais de 20% da população não têm emprego e mais de 80% vivem em bairros de periferia desprovidos de quase todas as benesses que o estado poderia proporcionar, inclusive, algum lazer de qualidade durante o próprio Carnaval. Não vale escalar celebridades de quinta ou ex-estrelas em queda vertiginosa típica de fim de careira para conter na periferia aqueles que nunca terão dinheiro para entrar em um dos blocos dos circuitos oficiais da festa. Quanto aos usos das imagens como as feitas pela Record, elas são um bem necessário, para desmascarar nem que seja um tiquinho a cobertura tacanha que se faz da festa e que deixa nos leitores e expectadores a impressão de que a grande maioria dos órgãos de imprensa se transforma em suplementos e edições especiais da Emtursa, Bahiatura e afins. As agressões exibidas talvez não mudem nada, mas no mínimo constrangem um pouquinho os órgãos de segurança pública, cujos homens que vão ás ruas para manter a ordem acabam por esbofetear, de forma gratuita, o rosto de quem não está cometendo infração alguma. CRIANÇAS NA SALA - Mas é bom ter em mente que esse constrangimento, se houver, é minúsculo, atrofiado e circunstanciado, do velho tipo não vai dar em nada. Mesmo porque, qual policial vai se constranger por distribuir uma bofetada aqui e outra acolá se na mesma semana se vê, também em rede nacional, o governador do Mato Grosso, por exemplo, aconselhando suas tropas, diante de microfones da TV, a, diante de marginais, não perder tempo e atirar para matar? Num país desses, em que o estado promove, estimula e executa explicitamente a violência e em uma cidade em que em 24h se teve notícia de três linchamentos a paus e pedras, o que se aproxima é o triunfo da barbárie, com direito a transmissão espetacular em rede nacional. O máximo que se pode fazer é seguir o conselho clássico diante da TV: retirem as crianças da sala porque as imagens são fortes.

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