Batismos de fogo
João Ubaldo Carneiro
A polícia tacou fogo no carro fujão, perfurando os vidros. Depois, mais gritos e estampidosNo sábado da semana retrasada, no comecinho de uma bela tarde, estava eu sentado, em companhia de amigos, a uma mesa do renomado boteco Tio Sam, sito na celebrada Rua Dias Ferreira, aprazível bairro do Leblon, na formosa cidade do Rio de Janeiro.
Como de hábito, em rodas de boteco que congregam representantes da pouco invejada terceira idade, o papo meandrava preguiçosamente, uns discutindo remédios para hipertensão, outros comentando as virtudes dos antioxidantes, outros descrevendo o mau comportamento de suas próstatas, outros mentindo sobre como nunca nem puseram os olhos num comprimido de Viagra, quanto mais tomar um, outros rememorando como era gostosa a Kim Novak, outros maldizendo verduras e demais comidas sadias, e assim por diante.
De súbito um rebuliço alvoroçado na esquina, sirenes, ranger de pneus, gritos. Atrás de um carro cuja passagem não cheguei a perceber, enfiou-se em velocidade uma viatura da PM e, quando comecei a querer decifrar o que seria aquilo, vi saindo pela janela um braço brandindo o que me pareceu ser uma metralhadora. Fez alguns disparos para o alto, enquanto o carro perseguido tentava entrar numa rua sem saída visível e dava uma ré de volta à Dias Ferreira.
A polícia tacou fogo novamente, desta vez em direção ao carro fujão, perfurando-lhe os vidros. Mais gritos e estampidos, mais ranger de pneus, confusão lá na frente, na esquina posterior à nossa.Como sempre dizem as testemunhas de episódios como esse, foi tudo muito rápido e, contado, parece que tomou muito mais tempo. Mas me lembro de ter pensado sobre o que era melhor - me deitar no chão ou me esconder lá dentro.
Acabei não fazendo nem uma coisa nem outra, mas me esgueirando para ficar grudado na parede da oficinazinha de bicicletas ao lado. Nos outros botecos das redondezas, algumas pessoas se atiraram ao chão, outras também se esconderam. Meus companheiros de mesa, meio afogueados com o susto, e aprovando ou desaprovando a ação da polícia, foram voltando aos poucos. Um deles, saindo de trás de um poste, estacou diante dos demais, esticou o tronco como quem é surpreendido pelas costas, passou a mão nos fundilhos e a levou ao nariz, arregalando os olhos.
- Sangue fede? - perguntou, com a expressão alarmada.
- Se sangue fede, estou ferido!
Pronto, risadaria desatada, pelo menos meia dúzia de piadas boladas instantaneamente, melhor rir do que chorar. O que se passara fazia parte do cotidiano, estava sempre nos noticiários, apenas tinha chegado a nossa vez. Havíamos ainda de botar as mãos para o céu, pois ninguém se ferira e as balas perdidas se perderam mesmo. E daí a menos de uma hora, o assunto já se esgotara e os jogos de futebol do final da semana requeriam maior atenção.
À noite, em casa, o telefone toca. Do outro lado, Zecamunista. Que bom, um velho amigo para conversar, depois de estar no meio de um tiroteio. Que queria ele, alguma coisa em especial? Não, não, só saudade mesmo, vontade de bater um papinho. Tinha acabado de raspar as fichas num sensacional torneio de pôquer em Barreiras, estava em Salvador, na companhia de umas moças que tinha convidado para os festejos juninos, tomando uma vodcazinha polonesa e fumando unos cubanitos.
Sabia de minha condição de camisolão pequeno-burguês, mas, de qualquer forma, eu estava convidado, mandaria a passagem logo que eu concordasse. Não concordei. Agradecia muito o convite, mas ficaria em casa mesmo, já estou muito velho para pular fogueira. Além disso, tinha acontecido um troço chato, no boteco.
- É, realmente foi chato - disse ele, depois de ouvir tudo.
- Mas isso tinha de acontecer mais cedo ou mais tarde, foi seu batismo de fogo.
- Isso de batismo de fogo é para quem está na guerra e eu não estou em guerra nenhuma.
- Aí é que você se engana, está, sim. São as contradições do capitalismo.
- Que contradições? Os caras roubam um carro e a polícia sai dando tiro atrás deles, uma bala podia ter me matado, qual é a contradição do capitalismo aí?
- Não dialogo com a ignorância. Vou lhe conceder uma matrícula grátis em meu seminário lá na ilha. Eu vou realizar um seminário intitulado Nós Também Queremos Rosetar, para conscientizar a população da ilha quanto a esses assuntos que você também desconhece, inclusive as contradições do capitalismo.
- Eu não quero saber de nada disso, só queria contar o que aconteceu.
- Eu sei, mas você não está preparado para enfrentar certas situações criadas pelas contradições do capitalismo. Agora mesmo ficou todo assustado com um tiroteiozinho de menos de um minuto.
- E você não ficaria?
- Claro que não, eu tenho experiência de combate! Eu já fui comandante... Mas não ouvi mais nada, porque, ao fundo, estampidos quebraram o silêncio e ele deixou o telefone por alguns instantes. Voltou ofegante, mas aparentemente tentando manter a calma. Tudo indicava que eram bombas e foguetes juninos, mas, com aquele movimento na rua, bem que podiam ser tiros, e as janelas não eram blindadas, que sufoco!
- É seu batismo de fogo - vinguei-me eu.
- As contradições...
- Sangue fede? - interrompeu ele.
- Se sangue fede, estou ferido! Texto publicado originalmente em 01 de julho de 2012, no jornal O Estado de São Paulo, no Caderno Cultura.
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