Entre estupros e chacinas, o Brasil quer ficar bem na fita
Malu Fontes
A violência do Brasil estampou-se nas manchetes do mundo há poucas semanas, quando uma turista americana entrou em uma van em um dos principais cartões-postais do país, o bairro de Copacabana, acreditando estar em segurança usando o transporte público do Rio de Janeiro. O percurso foi desviado, os demais passageiros foram obrigados a descer e a moça foi estuprada coletivamente por um bando de bárbaros que comandavam o veículo, clandestino. Bastou que, diante do caso, a imprensa internacional lembrasse que este era o país que sediaria a Copa das Confederações, a Copa do Mundo e as Olimpíadas para que a polícia do Rio se virasse nos 30 e desse conta de apresentar os criminosos em dois tempos.
Que a imprensa internacional esbugalhe os olhos diante de fatos dessa natureza, qual a surpresa? A barbárie nas grandes cidades brasileiras assombra aqui e lá fora. Chacinas, gente queimada viva, ondas de explosão de caixas de banco, saidinhas bancárias, sequestros relâmpago e taxas de homicídio que parecem genocídio. Diante da violência de qualquer grande metrópole brasileira, Bagdá e a Faixa de Gaza são dúplex no reino da paz.
No entanto, o que se torna quase tão inacreditável quanto a perpetração dessa violência em si é a reação de boa parte da população brasileira e de lideranças políticas diante da repercussão internacional. Quem já não leu nos jornais ou ouviu na TV declarações do tipo: “Ah, isso é péssimo para a imagem do Brasil lá fora, na véspera da Copa”. Como? A violência é um horror é para os brasileiros, que, sem estarem em uma guerra, vivem num país onde não podem sair às ruas certos de que voltarão vivos.
Os subtextos que se escondem sob crimes como o estupro da van são inúmeros e costumam passar em branco em termos de repercussão. A imprensa noticiou, após o episódio da americana, que uma brasileira moradora na periferia do Rio já havia sido estuprada na mesma van, na mesma rota e pelo mesmo bando. Dera queixa e nada foi feito. E a propósito, por que raios é mais importante que a imagem do Brasil fique bem na fita “lá fora” do que garantir a quem vive aqui e sustenta essa bodega o direito de poder sair às ruas sem medo de estupro, assalto e bala perdida?
O brasileiro espanta-se diante da grisalhice bela de William Bonner ou dos cachos de graúna de Patrícia Poeta noticiando com pesar mais um estupro na Índia. Esquece, no entanto, que os casos no Brasil aumentaram cerca de 170% em cinco anos, de 15.351 para 41.294 (2005-2010), sem contar que boa parte das mulheres não registra o fato por falta de estrutura nos lugares onde vivem ou por trauma e vergonha. Há uma semana uma garota de apenas 14 anos foi estuprada na Praia do Leblon, reduto da classe média alta do Rio de Janeiro.
O barulho que se fez foi quase nulo se comparado ao episódio da americana. Não é nada, não é nada, mas a menina é moradora do Morro do Vidigal. As questões domésticas podem esperar um poquito más. Tudo fica mais fácil com panos quentes, alguma lentidão e uma dose de descaso. Para que barulho se isso vai estragar, aos olhos dos estrangeiros, a imagem de Brasil cordial onde vive um povo tão feliz e sorridente que, por pouco, a nossa caricatura oficial ainda não se transformou numa bunda sob uma ampla dentadura sorridente? Texto publicado originalmente em 30 de abril de 2013, no jornal Correio da Bahia, pág. 02.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.
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