sábado, 6 de setembro de 2008

Senhor dos mares luso-afro-brasileiros

MARLON MARCOS

Algumas mortes são, verdadeiramente, encantamento. E este se traduz não pela falta que alguns deixam e, sim, na força da presença insolúvel de alguém que a poderosa morte não apaga da história de um país.
Morreu, fisicamente, o maior maestro, orquestrador, da cultura popular do Brasil. Um músico nascido das entranhas do povo que, de tão genial e longevo, serve como síntese de outros nomes memoráveis como Chiquinha Gonzaga, Noel Rosa, Pixinguinha, Assis Valente, Lupicínio Rodrigues, Ataulfo Alves, Cartola, Mário Lago, Batatinha e Ari Barroso.
Morreu o inventor lítero-musical de um lugar chamado Bahia. Uma Bahia circunscrita no Recôncavo do estado onde nasceu Caetano Veloso. Morreu - no silêncio sofrido dos seus 94 anos, carregando no próprio corpo o peso da gratidão dos seus conterrâneos pelos desenhos de beleza que ele cantou em nome de sua mítica baianidade.
Morreu a voz dos recantos longínquos da negra Cidade da Bahia - aquela que, nos anos 30, pululava com suas quituteiras, ganhadeiras, fateiras; filhas-de--orixá, mulatas arrojadas, brancas disfarçadas, católicas macumbeiras. A cidade marcada de mar e de pescadores; cidade de tambores a misturar dor e alegria, prazer e insatisfação - e, mais que tudo, fé.
Cidade da palavra em disparada, do português cheio de expressão quibundo, quicongo, iorubá, árabe, tupi-guarani; dos discursos preciosistas, eloqüentes, inflamados, ininteligíveis, barrocos, cantados.
O FAVORITO DE IEMANJÁ - Morreu o poeta maior da celebração - o mar dos baianos e dos brasileiros. O poeta do canto grave e certeiro a iluminar os feitos da cultura amalgâmica entre negros e brancos e a narrar o cotidiano de uma Salvador que foi eternizada nas melodias e nos versos deste nosso cantador.
Morreu o aedo favorito de Iemanjá, o orixá feminino mais aludido e por ele decantado, ícone divino que, vinculado ao mar, mais apareceu em suas canções. Iemanjá - rainha das ondas verdes do mar, a mãe-mulher dos pescadores, que inspirou também Jorge Amado a escrever seu célebre Mar Morto.
Morreu o altaneiro inventor da baiana estilizada de Carmen Miranda, o fotógrafo melhor das belas pretas do acarajé; o homem da voz e do violão construindo histórias, consolidando a civilização da Bahia, imaginando com o coração o ser e o estar do povo do qual ele foi o patriarca.
Morreu o homem Dorival Caymmi. Encantou-se, em sua luz de eternidade, um dos artistas mais importantes da história da canção no mundo. O artista que se imprimia de um lugar, herdeiro de uma luso-afro-brasilidade, senhor de um trânsito universal pela qualidade sem fronteiras da sua inventividade.
O homem das canções simples e sublimes - ideólogo da práxis entre saber erudito e saber popular; artista extremo do êxito do popular entre os humanos que marcou a grandeza das vozes femininas: Maria Bethânia - a Maricotinha reverente e precisa do compositor; Gal Costa, monstruosa doçura que o homenageou com sua voz instrumental em um disco eterno; Jussara Silveira, primorosa cantora re-embalando o mestre; Adriana Calcanhotto - nobreza, destreza, limpidez, acenando para o marítimo caymmiano; Bete Carvalho - iluminando-se-nos com o viés sambista do compositor; Elis Regina - emprestando o enorme talento à música de Caymmi; Clara Nunes - expandindo fé e musicalidade na obra do poeta; Mônica Salmaso - luminescência na singularidade de Dorival; Stella Maris, das raias da Bahia, o canto lindo de sereia. E, por fim, sendo o começo, Nana Caymmi, produto inteiro do gênio, uma das maiores cantoras deste planeta, mítica intérprete do pai.
A saudade toma conta da Bahia. Sobre a perda de Caymmi nessa inexorável ação da morte, sentimos por ele o alívio de uma vida lindamente cumprida e entregue a relatar e a inventar os feitiços do povo baiano.
O velho marinheiro se foi, conduzido por Iemanjá, sua mãe (e nossa) consoladora; encontra-se com seu parceiro maior nesses assuntos de baianidade, o amado Jorge. E pra orar, lembrar, cantar Caymmi, a música e as palavras de outro mestre, Gilberto Gil, em Buda Nagô.
Adormeceu o nosso João Valentão nos braços da terra que ele ajudou a inventar: uma parte do Brasil que fica entre Minas, Pará, Maranhão, Pernambuco, São Paulo e, ainda mais, Bahia e Rio de Janeiro.
MARLON MARCOS é jornalista, professor e mestre em estudos étnicos e africanos pelo Ceao/Ufba.

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