sábado, 6 de setembro de 2008

Baianidade para Condoleezza ver

MALU FONTES
Com a globalização econômica e cultural, a mercantilização de tudo e as teses sempre relativistas da pós-modernidade ou modernidade tardia, é chover no molhado discutir o que é natureza ou cultura, construção ou essência, cópia ou autêntico, manifestação cultural ou pastiche para atender às necessidades do mercadão de miudezas em que só imperam mesmo o arremedo e o descarte. Desse contexto não foge a tão propalada e quase nunca entendida baianidade. Afinal, o que essa tal de baianidade tem real ou de arremedo tosco para estrangeiro ver, políticos usarem, gente sem talento enriquecer e publicitário criar slogans que de tão ruins são ótimos? Se parte-se do princípio de que cada povo tem em sua história suas especificidades culturais, é inegável que a Bahia é, entre os estados brasileiros, um dos mais privilegiados com um caldo de cultura rico, denso e diverso. E essa afirmação não é apenas mais uma tese dessas batidas que consideram o baiano o rei da cocada preta e atribuem selo de qualidade, diversidade e riqueza a tudo o que se alcunha de cultura e é produzido na Bahia. Ao contrário: apesar desse berço cultural riquíssimo herdado pelos baianos, o que se produz de lixo como se valor tivesse é imensurável. Uma coisa, no entanto, é falar em cultura baiana. Outra, bem diferente, é falar em baianidade. Para falar da primeira, nada mais recomendável que mergulhar nas abordagens irretocáveis de Antonio Risério. Beirando a poesia, o antropólogo e poeta explica que esse vasto patrimônio cultural do qual a Bahia dispõe deve-se a um período econômico, social e histórico turvo, cujo início se dá quando da mudança do status de capital, de Salvador para o Rio de Janeiro. A Cidade da Bahia, então, mergulha num período longo e radical de ostracismo, abandono e esquecimento. Risério o chama de os 100 anos de solidão da Bahia. Para compreender melhor esse ensimesmamento baiano, outro aspecto importante é lembrar que, tanto o que se chama de cultura baiana quanto de baianidade devem ser compreendidas como sinonímicas de um conjunto de repertórios, práticas e comportamentos limitado a Salvador e seu entorno, o recôncavo. Nisso, a Bahia é meio madrasta, pois todo aquele mundão de meu Deus equivalente ao interior do estado raramente tem espaço na fita espetaculosa da qual sempre os produtores de cultura da capital lançam mão quando se trata de vender o que é mesmo que Bahia tem. Recentemente, houve um grande 'e$$forço' estatal para vender o São João do interior, é verdade. Mas a infra-estrutura existente é de dar dó e, vendê-la como se assim não fosse, beira o estelionato publicitário direcionado para paulistano endinheirado ver e vir, previamente seduzido pelos carnavais fora de época. Uma coisa é uma coisa, o Carnaval. Outra coisa é outra coisa, o São João. Os cem anos durante os quais Salvador amargou um ostracismo quase absoluto, quase como uma casa isolada cujos moradores não recebem visitas e perdem possibilidades de fazer trocas simbólicas, limitando a recepção de influências do outro, do estrangeiro, daquele que vem de outro lugar, fizeram com que a cultura do recôncavo depurasse, consolidasse-se, transformasse-se num caldo espesso e resistente para sobrevier a séculos e hoje alimentar manifestações e recriações de toda ordem. Essa á a cultura baiana que, embora construída secularmente entre índios, negros, portugueses, mestiços, tem sim algo de essencial, no sentido de específico desse pedaço de Brasil arrodeado pela Baía de Todos os Santos. Aí, vem o século XX, a industrialização, o progresso tecnológico, a riqueza que já não vem do que sai da terra, mas das engrenagens maquinímicas. Entram em cena uma nova forma de se fazer política: a estetização e a espetacularização. Nisso, o carlismo foi de um talento irretocável, como apontam magistralmente os textos do cientista político Paulo Fábio. Praticamente o estado político-burocrático e a engrenagem de mercado inventaram a baianidade. Chamaram uma penca de publicitários desses que a Bahia produz às dúzias, misturou-se alguns ingredientes da cultura baiana e nasceu a baianidade, ligeira, prematura, superficial, envernizada em uma beleza ofuscante. Descobriu-se que o negro era lindo, desde que na fotografia da Bahiatursa, da Emtursa, e 'fantasiado' de negro espetacular, feliz e conformado. Baianidade é, portanto, um apelido comercial, digerível e fascínio daquele caldo cultural espesso. Alguns dos seus aspectos têm um quê de charme, de malemolência, de vender a tese de que todo baiano é especial, artista – quando muitos estão mais para arteiros. O berço e o túmulo da baianidade é, a um só tempo, o seu uso político e caricaturalmente comercial, que muitas vezes arrasta o verbete para a fronteira do ridículo. Cultura baiana é a Irmandade da Boa Morte, o sincretismo religioso, as palavras lúcidas da Iyalorixá Mãe Stella sobre a história do Candomblé, a capoeira, a Festa de Iemanjá, a culinária, o som dos berimbaus e tambores, a música de Caymmi, o jeito de corpo dos meninos e meninas das periferias. Já baianidade é um leque amplo de salamaleques inventados pelo mercadinho de miudezas descartáveis e pelas elites políticas via publicidade. É a baianidade que transforma Condoleezza Rice e Naomi Campbell em deusas do ébano importadas, enfia em ambas umas fitinhas do Senhor do Bonfim feitas em São Paulo com tecido vagabundo sintético chinês – e que por isso não partem nunca. É a baianidade que leva o vendedor de côcos a - de cara amarrada – cobrar por um deles um pouco mais, um pouco menos de um real a um baiano com sede na rua; e a, pelo mesmo côco, já com dentes arregalados de sedução, cobrar cinco reais ou mais a um turista desavisado. A baianidade que acha linda a negritude do Olodum enfeitando a carreira de Michael Jackson e Paul Simon é a mesma que se trai em sua hipocrisia e sobe nos tamancos, horrorizada, quando Sérgio Guerra espalha por Salvador fotos gigantes de negros comuns, periféricos e de verdade, capturados pelas lentes lá no núcleo real da cultura baiana. MALU FONTES é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas e professora da Facom-UFBA.

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