segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Bichos de verdade

MALU FONTES
O Brasil não está em nenhuma guerra militar e nem tampouco há quem admita que o país viva uma guerra civil. No entanto, provavelmente em raros lugares do mundo a televisão e a imprensa noticiam diariamente mortes, ou melhor, assassinatos, na escala com que ocorre aqui. Até recentemente, as chacinas, os crimes em série ainda eram um infortúnio mais comum às duas maiores metrópoles brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro. Agora o privilégio é nacional. Se até bem pouco tempo as grandes chacinas e tiroteios vistos em outras metrópoles na tela da TV davam aos baianos uma sensação de que o crime por aqui ainda resguardava algo de provinciano, nos últimos meses a barbárie aportou sem escala gradativa. Não mais que de repente, mas por razões que a inteligência da segurança pública sabe muito bem quais são, emergiu uma forte onda de chacinas, trocas de tiros tanto no centro quanto nas periferias, guerras explícitas de traficantes e notícias de toque de recolher em diversos bairros.
COCAÍNA E GANSOS - Salvador entrou no noticiário da violência de alto escalão pela porta da frente e com uma característica própria. A marca singular do incremento da violência na cidade é a morte em série de pessoas absolutamente inocentes e sem qualquer tipo de vinculação com a motivação original que provocou o crime x ou y. Dificilmente em qualquer outra capital brasileira houve, em um período tão curto, o assassinato de tanta gente inocente por traficantes e quadrilhas. Não, as classes médias e altas não têm nada a ver com isso, coitadas, afinal a nada menos que uma tonelada de cocaína que Salvador comercializa por mês, segundo a Polícia Federal, deve ser toda usada como talco, pó branco, para deixar branquinhos os gansos do Dique do Tororó.
O modo de ação dos criminosos em Salvador é uma espécie de metáfora perversa de um recadinho vulgar dos traficantes do pedaço aos bandos rivais, um diálogo surdo e maquiavélico entre gangues em conflito. Traficantes brigam por controle de pontos de tráfico? Para intimidar uns aos outros, vão aos bairros dos concorrentes, param em frente à primeira birosca aberta, diante do primeiro aglomerado de gente e, sem levar em conta jamais quem são aquelas pessoas inocentes que estão na hora errada, no lugar errado (e o drama maior é que, nesse fogo cruzado não há hora certa nem lugar certo algum quando se trata de ter a segurança garantida), atiram a esmo. Não raro as vítimas passam de uma dezena.
INSETICIDA - Agem como em cenas de filmes hollywoodianos estetizadores da violência em que insanos assassinos disparam armas poderosas até exaurir a munição, abatendo gente como um inseticida faz com um aglomerado de formigas ou insetos. Esse modo do crime em torno do tráfico baiano operar torna seus executores algo hierarquicamente abaixo de qualquer bicho. Nenhum bicho mata á toa, por matar, para ameaçar outra espécie. A sociedade brasileira, sua desigualdade sócio-econômica, sua corrupção abissal, seu desprezo por educação e sua incompetência para planejar e construir um país de verdade está transformando gente em algo mais feroz que os mais ferozes dos bichos. Onde mais no mundo se mata gente inocente 'eleita' ao acaso, usada para mandar recado para inimigos que sequer sabem quem são os mortos e estão pouco se lixando para isso?
PERSONAL ONÇA - No entanto, o cenário previsto para o futuro no capítulo violência brasileira aponta para coisas ainda piores. Quem vive no Rio de Janeiro e tem interesse pela vida subterrânea da cidade, pelas práticas que a polícia, os políticos e a sociedade sequer querem tomar conhecimento, há muito já vem contando que os traficantes de verdade, aqueles com poderio bélico, no alto inacessível de seus morros, há algum tempo estão criando onças para devorar o corpo de cadáveres e não deixar provas. Há quem diga que não necessariamente o corpo do 'inimigo', para ser ofertado à onça dos bunkers, deve estar morto. Se vivo, maior o gozo dos que assistem à cena. No dia a dia, a rotina da personal onça dos chefões do tráfico é ser elemento de tortura. Diante do bicho, os ameaçados juram fidelidade absoluta, silêncio eterno e denunciam desde supostos traidores até a mãe.
Para quem acha que isso é uma lenda urbana de quinta, produzida pela cultura da violência e pelo território fértil do imaginário brasileiro, a notícia dos jacarés apreendidos no Rio, veiculada nos telejornais da última quarta feira, usados por marginais para forçar vítimas de seqüestro relâmpago a dar todas as senhas de cartões e o que mais tivessem de valor, é uma amostra de que nada do que se diga sobre o repertório da violência nacional deve ser subestimado. Ela não só transforma seres humanos em bichos desprovidos até mesmo de instintos, como agora passou a incorporar aos seus grupos feras de verdade para aprimorar suas ações. Só mesmo no Brasil para onças e jacarés integrarem o exército da violência urbana. Diante de notícias assim, pit bulls, coitados, soam como coelhinhos da páscoa e o Zé Pequeno de Cidade de Deus é café pequeno.

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