A evolução e a natureza
ANTONIO CICERO
NORMALMENTE SUPÕE-SE que o grande escândalo causado pela teoria da evolução seja devido à descoberta de que o ser humano descende de alguma espécie de macacos. De fato, isso foi sem dúvida um escândalo espetacular, uma enorme "ferida narcísica", como dizia Freud, infligida ao homem que aprendera ter sido criado à imagem de Deus. Mas a teoria da evolução provocou também outro escândalo que, embora menos espetacular, não é menos importante. Trata-se da relativização das espécies naturais. Desde Aristóteles, supunha-se que, criadas ou não, as espécies naturais fossem imutáveis.
A espécie à qual um ente qualquer pertencia era considerada a sua natureza. Descobria-se essa natureza a partir do estudo dos espécimes que se encontravam, como dizia Aristóteles, num estado natural, em oposição aos espécimes "degenerados". Como sabemos que um espécime se encontra no estado natural? Pela observação da sua normalidade, isto é, do fato de que sua constituição física e seu comportamento não desviam da constituição e do comportamento da maior parte dos indivíduos da mesma espécie. O anormal, ao contrário, é considerado degenerado. Desse modo, a normalidade se torna normativa. O degenerado é aquele que se constitui ou se comporta contra a sua natureza: "contra naturam".
Pois bem, observando a natureza humana e a natureza da sociedade humana, Aristóteles conclui que o natural é que a alma governe o corpo, a inteligência, os apetites, o homem, os animais, o macho, a fêmea, e o senhor, o escravo. Para ele, essas relações são naturais, e qualquer supressão ou inversão delas se daria contra a natureza. Do mesmo modo, o velho Platão, na sua última obra, pressupõe que a finalidade do erotismo, no indivíduo natural/normal, é a reprodução; logo, considera contra a natureza toda relação homossexual. Esta última concepção se consolidou na Idade Média e é até hoje doutrina da Igreja Católica, para a qual toda relação homossexual infringe uma "lei natural".
Tal "lei" não passa, evidentemente, de um equívoco, pois as leis da natureza, que são descritivas, isto é, que dizem o que realmente acontece, não devem ser confundidas com as leis humanas, que são prescritivas, isto é, dizem o que deve (ou não deve) ser feito. A lei da gravidade, por exemplo, não diz que todos os corpos que têm massa devem se atrair de determinado modo e sim que se atraem desse modo. Se for descoberto que determinados corpos têm massa e, no entanto, não se atraem do modo previsto, não serão esses corpos que estarão errados, mas a lei da gravidade. Assim também, se uma "lei natural" diz que os indivíduos do mesmo sexo não sentem atração erótica uns pelos outros, basta abrir os olhos para ver que essa "lei" está errada, ou melhor, não é lei, não existe.
A teoria da evolução mostrou que a própria natureza não é algo fixo de uma vez por todas, mas se encontra em transformação. As espécies biológicas mesmas não têm "naturezas" eternas, mas estão em incessante evolução. Isso significa que não se pode considerar como natural exclusivamente a constituição física ou o comportamento "normal", isto é, tradicional. Uma espécie nova surge exatamente a partir das mutações -da "degeneração" - de uma espécie antiga. O indivíduo que, por ser portador de uma mutação está sujeito a ser considerado uma monstruosidade, talvez seja o limiar de uma nova espécie.
O ser humano é o produto de tais mutações, e sua maior novidade consiste em que não apenas a espécie humana, mas cada espécime humano é infinitamente capaz de mudar a si próprio, capaz de experimentar o que nunca antes se experimentou, capaz de criar o que nunca antes existiu. Toda invenção, toda arte, toda técnica, toda cultura pode ser considerada como o resultado da transformação - poderíamos dizer, da perversão - da natureza pelo homem. O primeiro antropóide a se erguer e usar as patas dianteiras como mãos - abrindo caminho para a aventura humana - estava pervertendo a função "natural" desses membros.
Não é lícito, portanto, invocar a "natureza" para justificar - ou para condenar - tais ou quais comportamentos, atos ou instituições. Quem o faz - ainda que seja um gênio, como Aristóteles - inevitavelmente incorre no provincianismo de "naturalizar" comportamentos, atos ou instituições da sua própria cultura, tais como a dominação do homem sobre a mulher, a escravidão ou - como o velho Platão - a condenação da homossexualidade.
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