sábado, 16 de julho de 2005

Laënnec Hurbon - O Brasil não é (e é) o Haiti

Sociólogo haitiano analisa as convergências entre os dois países, vê a cultura e o futebol como uma ponte entre os povos e defende que a libertação dos escravos precisa ser completada Débora Pinheiro

Continente multicultural - maio de 2005 - n. 53

Dedicado à análise das relações entre escravidão, religião e política, o sociólogo Laënnec Hurbon é considerado um dos mais influentes intelectuais haitianos de sua geração. Doutor em teologia pelo Instituto Católico de Paris e em sociologia pela Sorbonne, Hurbon é atualmente diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS) mas mora no Haiti, onde é professor e membro fundador da Universidade Quisqueya. Durante a 6ª Semana de Culturas Francófonas na UFPE, ele trouxe, em 17 de março, algumas reflexões sobre a diversidade cultural e os desafios em face da hegemonia de idéias e valores globalizados.

Nesta entrevista exclusiva, Hurbon se dispôs a falar também de aspectos históricos e políticos que explicam uma identificação cultural forte, embora pouco explorada, entre os povos haitiano e brasileiro. "Estive no Brasil pela última vez em 1992, durante um congresso de especialistas da história da Igreja da América Latina e do Caribe", lembra, lamentando ter ficado tanto tempo sem voltar para um país onde diz se sentir completamente em casa. "Prometi a mim mesmo aceitar todas as propostas de cursos e seminários em universidades brasileiras", comenta, cumprindo logo a palavra com a presença em eventos no Ceará, em Pernambuco e na Bahia, em menos de sete dias, durante o mês de março.

Continente: Na aldeia global, como situar o Haiti?
Laënnec: O Haiti é um microcosmo do mundo moderno; ali todos os grandes problemas não resolvidos e escondidos da modernidade aparecem de maneira inequívoca. Compreender o Haiti é compreender os horrores de um mundo que marginaliza a maioria da população enquanto celebramos a aldeia global. Uma igualdade efetiva entre indivíduos e povos não pode acontecer enquanto um império se instaura sem um contrapeso real.

Então o senhor também acha que o Haiti é aqui?

Existe uma certa ambigüidade nessa música de Gilberto Gil, que tenta provocar nos brasileiros uma solidariedade mais profunda com o Haiti. O Brasil não é o Haiti das ditaduras recorrentes e da miséria sem cabimento. Porém, o Brasil é o Haiti por causa de uma memória de escravidão e de despotismo que deveria suscitar uma maior solidariedade entre haitianos e brasileiros, além de uma tomada de consciência da situação do Brasil no que diz respeito às desigualdades sociais e às relações interétnicas. Gil também vê no Haiti a terra da liberdade, o primeiro país a sair da escravidão por uma insurreição geral, embora ainda precise lutar contra o despotismo.

O que o senhor pensa das tropas brasileiras à frente da missão de estabilização do Haiti?
Ah, que situação delicada! Há um ano, desde a demissão de (Jean-Bertrand) Aristide e sua partida (que não foi forçada, já que ele não dirigia mais nada), acreditava-se que as forças estrangeiras vinham para apoiar a Polícia, que era uma instituição frágil e colocada a serviço da política de Aristide. Para vários de nós, a presença das Forças Brasileiras é um sinal de solidariedade com o Haiti. Pensava-se então que essas forças estrangeiras iriam colaborar para o desarmamento dos grupos armados chamados chimères ("garotos maus", em crioulo), esses novos tonton-macoutes (milícias para-policiais que perseguiam e matavam opositores dos Duvalier, pai e filho, cujo governo ditatorial ficou conhecido como o mais truculento da história do país até então). Pois a insegurança só aumentou e as forças da ONU se mostraram negligentes em relação a esses grupos como se eles representassem o povo e como se isso se relacionasse a um problema social derivado da miséria e do desemprego. Com esses grupos armados, Aristide tentou controlar as favelas, cujos habitantes foram as primeiras vítimas desses grupos armados que operam impunemente.

Como o senhor avalia a evolução cultural dos dois países rumo a um futuro mais esperançoso para a América Latina?

Os dois países partilham um futuro comum por terem, antes de tudo, uma memória comum. Essa memória não se orienta necessariamente para o culto do passado ou para a retomada de fatos traumáticos. Tomo como exemplo o projeto da Unesco da Rota do Escravo. Trata-se de um projeto que propôs uma volta crítica ao passado do tráfico e da escravidão para descobrir movimentos solidários entre os povos, novas culturas que emergiram nas lutas que os escravos travaram pela liberdade. Há semelhanças tão profundas entre os dois povos que, se eles conseguirem se ajudar mutuamente, poderão colaborar muito mais para a revalorização de toda a América Latina, tanto no âmbito cultural como no político. Porém, o Brasil deve saber que só pode acompanhar o Haiti no seu combate atual contra a ditadura e o subdesenvolvimento se buscar o máximo de informações sobre o que representava o regime criado por Aristide entre 2000 e 2004.

Que elementos culturais brasileiros e haitianos o senhor destaca na construção da identidade desses dois países?

Os haitianos dispõem de uma herança cultural e religiosa importante que se enraíza no vodu, que eqüivale ao candomblé brasileiro. O que a pintura, a música (com ritmos nacionais como o compas e o meringue), a dança, a literatura, enfim, as manifestações artísticas do Haiti devem ao vodu é incomensurável. Também acredito que o candomblé tenha essa mesma importância no Brasil. A identidade brasileira tem um vínculo muito forte com a memória da escravidão. Todos os outros grupos de migrantes deveriam reconhecer e assumir essa memória para que o Brasil se livre de preconceitos racistas que ainda habitam instituições e mentalidades.

Como comparar o racismo brasileiro com o haitiano?

Por muito tempo, certas obras antropológicas apontaram o Brasil como um país em que a democracia racial triunfara, mas a realidade é outra. Eu percebi isso em minhas viagens ao Brasil. No Haiti, o preconceito de uma parte de mulatos contra os negros é uma herança do escravagismo, pois não há mais brancos no país desde o extermínio organizado pelo primeiro chefe de Estado, Jean-Jacques Dessalines, em 1805, que só poupou os farmacêuticos, os padres e os regimentos poloneses e alemães que viraram a casaca contra a França de Bonaparte em 1802, durante a guerra da independência.

No conjunto de sua obra, o senhor menciona que as respostas para as injustiças sociais podem ser encontradas no seio mesmo dos movimentos nascidos por escravos rebelados. Que iniciativas significativas nesse sentido podem ser percebidas na América Latina?

O que caracteriza os movimentos de revolta desencadeados por escravos no Caribe e em toda a América Latina é a reivindicação clara da igualdade e da liberdade. Porém, atualmente essa reivindicação espera ainda por ser honrada, pois a saída real da escravidão supõe o acesso à cidadania plena e integral. Ora, do século 19 até hoje os problemas de acesso à propriedade, de reconhecimento de culturas e religiões herdadas da escravidão, as possibilidades de se obter serviços de base como saúde, escola etc. Tudo isso mostra que comunidades inteiras, sejam elas negras ou indígenas, são marginalizadas. Os movimentos sociais que lutam pela reforma agrária, os movimentos feministas, os sindicatos e as organizações que militam contra as políticas das instituições internacionais obcecadas pela privatização dos bens públicos parecem se situar na linha das revoltas baseadas em uma demanda de igualdade e liberdade – ou seja, o que ficou incompleto no passado, para retomar a expressão do filósofo Ernst Bloch.