domingo, 1 de julho de 2012

Urubu doméstico, cabra adestrada e galinha humana

Malu Fontes
Este título é apenas uma tentativa, que já nasce frustrada, de traduzir o circo de horrores em que se tornou a televisão. E o que é pior: para tudo o que aparece de muito ruim ou muito raso, hoje, na TV brasileira, os profissionais das emissoras, devidamente emprenhados pelo ouvido pelos colegas dos departamentos comerciais e de marketing, vomitam um argumento que já vive pronto na ponta da língua: é isso o que a Classe C quer ver.
Custa a crer que nenhuma entidade tenha, até agora, se apresentado disposta a se queixar juridicamente contra esse estigma de burrice, ignorância e preguiça intelectual que vem sendo colado pelos meios de comunicação aos integrantes da nova Classe C, recentemente endinheirada. Quem é louco para ter uma ONG para chamar de sua, fica a dica, como diz a gíria: corra e crie urgente uma ONG para pedir indenização por danos morais à mídia brasileira argumentando que esta vem atribuindo de forma ostensiva e preconceituosa à classe C a condição de burrice extrema e de consumidora das piores coisas que se tem feito na indústria cultural.
Classe bárbara - Sobre essa burrice associada pelos meios de comunicação de um modo geral à Classe C, o professor Muniz Sodré, baiano de São Gonçalo dos Campos, hoje professor da Universidade Feral do Rio de Janeiro e um dos maiores intelectuais brasileiros, deu, na última segunda-feira, no centro do programa Roda Viva, da TV Cultura, uma aula sobre o assunto. Comemorando 70 anos e no auge da maturidade intelectual, questionou que Classe C é essa, inexistente da forma como vem sendo representada pela imprensa e pelas emissoras de TV, incluindo, principalmente, a teledramaturgia, que agora a adotou como protagonista, vestida de outras cores, mas se comportando sempre como uma classe bárbara.
Durante a semana, um dos programas locais de TV em Salvador realizou a fantasia de um voyeur da periferia que registrou imagens da fantasia sexual de um casal de classe média que resolveu fazer sexo de madrugada em um lugar insólito: entre os vagões de um trem na periferia da cidade. O apresentador do programa onde as imagens do ato sexual foram parar achou por bem considerar a coisa mais normal do mundo, já que empoderado por sua turba de seguidores alfabetizados exclusivamente pela mídia eletrônica sem nunca ter (podido) passar pelo livro e pela reflexão crítica, chamar a mulher da cena de galinha. Anunciando a profissão da moça, médica, ameaçava revelar sua identidade e reiterava o quanto ela estaria, a partir de agora, desmoralizada.
Galinha - Numa cidade onde a média de assassinatos por fim de semana só raramente não ultrapassa as duas dezenas, crime bárbaro mesmo, para uma mulher, parece ser fazer sexo com seu companheiro num lugar inóspito. Sim, só ela, nas palavras repetidas na TV, está desmoralizada, “porque ele é homem” (sic).
Diante disso, é mesmo de se estranhar que oito bárbaros espanquem com paralelepípedos na cabeça (até a morte de um) dois irmãos gêmeos que andavam abraçados numa rua em Camaçari (BA)? O julgamento dos assassinos diante de dois homens abraçados na rua é semelhante ao da TV diante de uma mulher flagrada por uma câmera fazendo sexo com seu companheiro. Para os primeiros, eles devem apanhar porque são ‘mulherzinhas’ (sic). Para a segunda, a mulher deve ser desmoralizada porque ‘é uma galinha’ (sic).
Em tempos caleidoscópicos em que marchas feministas se auto-batizam de marcha das vadias, lésbicas protestam mostrado os peitos e ficam furiosas por serem rotuladas de musas nas manchetes e em que, pela primeira vez, uma mulher conduz o país e é elogiada pela firmeza de opiniões e gestão, é uma volta à idade média e à inquisição ver num programa de TV uma campanha de desmoralização de uma mulher por ter sido flagrada por uma câmera escondida fazendo sexo numa estação de trem.
E o medievalismo está menos na reação diante da cena e mais no fato de se defender a tese de que a desmoralizada é ela, porque, como creem os medievalistas, ‘em homem não pega nada’. Essa tese foi dita, mal dita e reverberada ao vivo, na TV, e reiterada nas redes sociais pela audiência bombada dos alfabetizados televisuais.
Nesse contexto, em que mulheres são xingadas de galinhas, reclamar do quê se vez ou outra o telejornal concorrente lança mão de atrações animais reais? Diante de uma mulher sendo chamada de galinha pela sanha moralista de uma turba ignara, porque fez com seu corpo e seu companheiro o que bem quis, como reclamar se um dia o principal programa local do telejornalismo classicão exibe um urubu tornado bicho doméstico ultra-mega-super amigo de um surdo mudo lavador de carros da periferia e no outro uma cabra que mora e se comporta como cachorros e é adestrada como tal por um profissional que anuncia para os próximos dias a presença de um porco com as mesmas habilidades?
Tetas - Para fechar com chave de ouro a descrição freak da programação da TV, vista neste texto a partir da ótica de Salvador, destaca-se a farra publicitária da Prefeitura de Salvador com a exibição, sempre em horário nobre, quando o custo de cada segundo é altíssimo, com um jingle que, estivesse Chacrinha vivo, deveria ser premiado com o Troféu Abacaxi.
Sem obras para mostrar e ancorado em um slogan torto que nomeia Salvador como ‘Cidade Sede do Trabalho’, o anúncio institucional repete o versinho tolo ‘eu amo amar Salvador’. Quem vive na cidade sabe que, se há coisas que os gestores dessa cidade não fazem, é trabalhar. Sabe também que o verso seria melhor tradutor das coisas se o verbo amar usado de forma falsa e melosa fosse substituído por mamar. Ah, quão generosas para os gestores têm sido as tetas de Salvador...
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 01 de julho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA.

Batismos de fogo

João Ubaldo Carneiro
A polícia tacou fogo no carro fujão, perfurando os vidros. Depois, mais gritos e estampidosNo sábado da semana retrasada, no comecinho de uma bela tarde, estava eu sentado, em companhia de amigos, a uma mesa do renomado boteco Tio Sam, sito na celebrada Rua Dias Ferreira, aprazível bairro do Leblon, na formosa cidade do Rio de Janeiro.
Como de hábito, em rodas de boteco que congregam representantes da pouco invejada terceira idade, o papo meandrava preguiçosamente, uns discutindo remédios para hipertensão, outros comentando as virtudes dos antioxidantes, outros descrevendo o mau comportamento de suas próstatas, outros mentindo sobre como nunca nem puseram os olhos num comprimido de Viagra, quanto mais tomar um, outros rememorando como era gostosa a Kim Novak, outros maldizendo verduras e demais comidas sadias, e assim por diante.
De súbito um rebuliço alvoroçado na esquina, sirenes, ranger de pneus, gritos. Atrás de um carro cuja passagem não cheguei a perceber, enfiou-se em velocidade uma viatura da PM e, quando comecei a querer decifrar o que seria aquilo, vi saindo pela janela um braço brandindo o que me pareceu ser uma metralhadora. Fez alguns disparos para o alto, enquanto o carro perseguido tentava entrar numa rua sem saída visível e dava uma ré de volta à Dias Ferreira.
A polícia tacou fogo novamente, desta vez em direção ao carro fujão, perfurando-lhe os vidros. Mais gritos e estampidos, mais ranger de pneus, confusão lá na frente, na esquina posterior à nossa.Como sempre dizem as testemunhas de episódios como esse, foi tudo muito rápido e, contado, parece que tomou muito mais tempo. Mas me lembro de ter pensado sobre o que era melhor - me deitar no chão ou me esconder lá dentro.
Acabei não fazendo nem uma coisa nem outra, mas me esgueirando para ficar grudado na parede da oficinazinha de bicicletas ao lado. Nos outros botecos das redondezas, algumas pessoas se atiraram ao chão, outras também se esconderam. Meus companheiros de mesa, meio afogueados com o susto, e aprovando ou desaprovando a ação da polícia, foram voltando aos poucos. Um deles, saindo de trás de um poste, estacou diante dos demais, esticou o tronco como quem é surpreendido pelas costas, passou a mão nos fundilhos e a levou ao nariz, arregalando os olhos.
- Sangue fede? - perguntou, com a expressão alarmada.
- Se sangue fede, estou ferido!
Pronto, risadaria desatada, pelo menos meia dúzia de piadas boladas instantaneamente, melhor rir do que chorar. O que se passara fazia parte do cotidiano, estava sempre nos noticiários, apenas tinha chegado a nossa vez. Havíamos ainda de botar as mãos para o céu, pois ninguém se ferira e as balas perdidas se perderam mesmo. E daí a menos de uma hora, o assunto já se esgotara e os jogos de futebol do final da semana requeriam maior atenção.
À noite, em casa, o telefone toca. Do outro lado, Zecamunista. Que bom, um velho amigo para conversar, depois de estar no meio de um tiroteio. Que queria ele, alguma coisa em especial? Não, não, só saudade mesmo, vontade de bater um papinho. Tinha acabado de raspar as fichas num sensacional torneio de pôquer em Barreiras, estava em Salvador, na companhia de umas moças que tinha convidado para os festejos juninos, tomando uma vodcazinha polonesa e fumando unos cubanitos.
Sabia de minha condição de camisolão pequeno-burguês, mas, de qualquer forma, eu estava convidado, mandaria a passagem logo que eu concordasse. Não concordei. Agradecia muito o convite, mas ficaria em casa mesmo, já estou muito velho para pular fogueira. Além disso, tinha acontecido um troço chato, no boteco.
- É, realmente foi chato - disse ele, depois de ouvir tudo.
- Mas isso tinha de acontecer mais cedo ou mais tarde, foi seu batismo de fogo.
- Isso de batismo de fogo é para quem está na guerra e eu não estou em guerra nenhuma.
- Aí é que você se engana, está, sim. São as contradições do capitalismo.
- Que contradições? Os caras roubam um carro e a polícia sai dando tiro atrás deles, uma bala podia ter me matado, qual é a contradição do capitalismo aí?
- Não dialogo com a ignorância. Vou lhe conceder uma matrícula grátis em meu seminário lá na ilha. Eu vou realizar um seminário intitulado Nós Também Queremos Rosetar, para conscientizar a população da ilha quanto a esses assuntos que você também desconhece, inclusive as contradições do capitalismo.
- Eu não quero saber de nada disso, só queria contar o que aconteceu.
- Eu sei, mas você não está preparado para enfrentar certas situações criadas pelas contradições do capitalismo. Agora mesmo ficou todo assustado com um tiroteiozinho de menos de um minuto.
- E você não ficaria?
- Claro que não, eu tenho experiência de combate! Eu já fui comandante... Mas não ouvi mais nada, porque, ao fundo, estampidos quebraram o silêncio e ele deixou o telefone por alguns instantes. Voltou ofegante, mas aparentemente tentando manter a calma. Tudo indicava que eram bombas e foguetes juninos, mas, com aquele movimento na rua, bem que podiam ser tiros, e as janelas não eram blindadas, que sufoco!
- É seu batismo de fogo - vinguei-me eu.
- As contradições...
- Sangue fede? - interrompeu ele.
- Se sangue fede, estou ferido! Texto publicado originalmente em 01 de julho de 2012, no jornal O Estado de São Paulo, no Caderno Cultura.