domingo, 5 de outubro de 2008

A vida é filme

MALU FONTES O poder de apreensão e captura de uma câmera de TV, quando se aproxima de uma vida normal, da rotina e dos dramas de pessoas normais, é tamanho que remete a um quê de extirpação da alma dos capturados por suas lentes. Claro que essa tese não se aplica às celebridades, verdadeiros bichos de TV, criados para se espalharem dentro dessa caixa eletrônica transformada em altar nos lares das mais distintas classes sociais. Essa apropriação é absoluta quando as câmeras se deparam com gente comum, seus dramas e suas tragédias. Há uma semana, todas as emissoras veicularam uma cena que, a uma primeira observação, se simplista, reducionista, de raspão, tinha tudo para se passar por uma cena típica de comoção, dessas perfeitas para emocionar o que restou da tradicional família brasileira que, por se saber em extinção, não resiste a uma historinha com desfecho feliz. Uma senhora de meia-idade, moradora em Florianópolis, teve os filhos roubados pelo ex-marido há 36 anos, um menino e uma menina. Nessas quase quatro décadas, nunca teve uma informação sequer sobre os dois.
O Ó - Com o advento das novas tecnologias, as organizações, entidades e associações que procuram gente desgarrada da família ganharam um aliado e tanto. Nesse contexto, dona Cibelle, a mãe que teve os filhos arrancados de si, tinha apenas uma frágil arma de busca: uma foto dos dois tirada em 1972. Com essa foto, no entanto, pelas infovias percorridas por informações no mundo digital, chegou miraculosamente a Alessandra e Clayton, os filhos, hoje morando na cidade de Santos (SP).
Entretanto, o que era para ser uma história de emoção, comoção, alívio, felicidade em estado bruto e tensão, resvalou, graças à invasão, paradoxalmente consentida pelas personagens envolvidas, supõe-se, em mais um entretenimentozinho para o telespectador dormir feliz com a certeza de que Deus escreve mesmo certo por linhas tortas e que a justiça divina pode até tardar, mas não falha.
Para quem ainda não perdeu a sensibilidade diante da vida e acha "o ó" quem vive de emoções estetizadas ou espetacularizadas de segunda mão, embaladas em produto de entretenimento, tem todos os motivos do mundo para considerar o tal reencontro e a forma como ele se deu uma obra-prima de como vulgarizar a nobreza e a sacralidade de uma tragédia familiar.
BACIADA - Para quem perdeu a cena nos telejornais, o primeiro reencontro de Dona Cibelle com sua filha Alessandra, o primeiríssimo depois de 36 anos de privação de companhia e relacionamento entre mãe e filha, se deu diante de câmeras de TV. E só o fato de os telespectadores consumirem tal episódio do mesmo modo como consomem mais um caso de um bebezinho abandonado no lixo que passa a se chamar Vitória após ser resgatado da morte por uma benemérita família de classe média já é suficiente para se concluir o quanto o público é anestesiado e prefere a contemplação à reflexão.
Não é saudável, normal, agradável, ético nem moralmente aplaudível que uma mãe que teve os filhos roubados há 36 anos os reencontre pela primeira vez sem a privacidade e a dignidade impossíveis de serem garantidas com luzes, câmeras e ação de equipes de TV. É a nobreza da condição humana, a privação da alegria, o sofrimento maternal contido em quase quatro décadas, tudo isso transformado em emoção vulgar para consumo descartável das massas.
Nessa baciada de vulgaridade que é a tal sociedade do espetáculo, tudo é bigbrotherizado, novelizado, transformado em filme B. A tragédia mais que grega de Dona Cibelle, ao ser transmitida quase "ao vivo" pela TV e lentes do telejornalismo no circo televisivo, passa a ter um único propósito: fazer o telespectador esquecer os tiroteios, os seqüestros, a corrupção, a crise econômica e a ribanceira do mundo apresentados no bloco noticioso anterior.
BARATAS - No jornalismo local, o toque da insensibilidade vulgar que domina a sociedade foi dado por uma professora do Colégio Estadual Severino Vieira, onde uma aluna foi esfaqueada em várias partes do corpo e espancada por colegas.
Diante das acusações da mãe da aluna, para quem houve - e é verdade - omissão de socorro por parte dos responsáveis pelo colégio e dos vigilantes, uma senhora de pele oleosa, cabelinho mequetrefe e óculos de beata rancorosa amarga, autoridade no referido colégio, apareceu em rede nacional, na edição do Jornal da Band da última quarta-feira, dizendo que vigilante de escola existe para proteger o patrimônio físico da instituição.
Perguntar não ofende: uma escola é mesmo um lugar recomendável para uma senhora que pensa assim trabalhar? Mas, quem se importa? Todo mundo acha tudo normal. Em entrevista a Marília Gabriella (GNT) na última semana, o cineasta Fernando Meirelles citou uma frase que é a cara do Brasil e do pensamento torto típico de gente como a senhorinha: é incrível como o ser humano assiste à progressão da barbárie com a capacidade de adaptação das baratas.