domingo, 26 de fevereiro de 2006

Patologia do poder

Elieser César
A Tarde, sábado, 25 de fevereiro de 2006 – CULTURAL LETRA PO RLETRA Na Bahia, uma música ingênua diz que "Selassié era um rei que gostava de reggae". Puro reducionismo dos admiradores destes lados dos trópicos do etíope rás Tafari Makonnen que, em novembro de 1930, seria empossado imperador da Etiópia com o nome de Hailé Selassié I e que governaria, por quase meio século, com mão-de-ferro, aquele miserável país africano, julgando-se o rei dos reis, descendente direto de Salomão. Na verdade, o que Selassié gostava mesmo era de ser comparado ao escolhido de Deus, submeter seu povo à opressão, viver nababescamente, enquanto a população sucumbia à fome e à desnutrição e conduzir um império forjado na subserviência, na bajulação, nos privilégios de uma elite corrupta e preguiçosa, na delação e num impiedoso aparelho repressor.
Esta é a imagem nada edificante do ídolo dos rastafáris, cultuado inclusive pelo cantor jamaicano Bob Marley, que emerge das quase 200 páginas do livro O imperador, do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski, o mais novo lançamento da coleção "Jornalismo Literário", da Companhia das Letras, que já brindou os aficionados das grandes reportagens com títulos como Hiroshima, de John Hersey; A sangue frio, de Truman Capote; e A milésima segunda noite da Avenida Paulista, do brasileiro Joel Silveira. Com o subtítulo "Os bastidores do palácio de Hailé Selassié I, o tirano que governou a Etiópia por 44 anos", O imperador empreende uma ácida, porém irônica, patologia do poder.
Correspondente de agências de notícias, jornais e revistas, na Índia, Paquistão, na Ásia, América Latina e África, testemunha de 27 golpes de Estado e diversas revoluções, Kapuscinski disseca em seu livro, com a perícia de um patologista social, a doença chamada poder, com todas as mazelas, baixezas, vilanias e (por que não?) atos heróicos que ela dissemina no organismo da sociedade. É um livro obrigatório para jornalistas, professores e estudantes de jornalismo e para todos aqueles que se interessam por política, história e sociedade. Na contramão de muitos jornalistas, sobretudo dos frenéticos correspondentes estrangeiros, para escrever seu livro-reportagem Kapuscinski foi ouvir não os detentores do poder que caíra em desgraça em setembro de 1974, mas os serviçais e servidores palacianos que acompanharam com humildade, respeito, medo e resignação monástica, o longo reinado de Hailé Selassié.
Dentre os exaustivos depoimentos colhidos pelo jornalista, figura o do apagado funcionário encarregado de colocar uma enorme almofada embaixo do alto trono do pequeno monarca, para que os augustos pés de Sua Majestade não ficassem balançando em posição constrangedora diante dos súditos e das delegações estrangeiras. Há também a entrevista do servidor incumbido de emitir um quase imperceptível aceno de cabeça para que o auto-intitulado "Leão de Judá" percebesse que havia chegado o fim de determinada audiência e não perdesse mais seu excelso tempo com conversa fiada...
Foi dando voz aos pequenos, homens simples, leais e, até o fim, devotados, ao imperador, que Kapuscinski acabou, na insuspeita opinião do escritor britânico Salman Rushdie, escrevendo um livro que transcende a reportagem para dar lugar "a uma narrativa de pesadelo sobre o poder". O livro é narrado do ponto de vista dos servidores palacianos, permeado, aqui e ali, por incursões contextualizadoras do jornalista. Para proteger suas fontes da perseguição do novo regime, Kapuscinski identifica os entrevistados apenas pelas iniciais, o que, para alguns críticos, não tornaria os relatos confiáveis. Porém, para outros especialistas, o jornalista terminou resistindo à tentação classista de falar em nome das fontes, preferindo dar voz aos vassalos da corte, mantendo a dicção original de cada entrevistado.
ESTÍMULO À CORRUPÇÃO – O poder de Hailé Selassié era tão grande que, em todo o império, qualquer gasto acima de US$10 precisava ser aprovado pessoalmente pelo soberano e "um cano furado só podia ser trocado se o imperador aprovasse a despesa". Em determinado trecho de O imperador, um servidor do Salão Dourado de um dos 13 palácios de Selassié dimensiona o grau de corrupção do império do rei que gostava de reggae, como se canta na Bahia: "Não consigo me lembrar de um só caso em que o gracioso monarca tenha anulado uma promoção ou expulsado alguém do palácio por corrupção. Corrompam-se à vontade, desde que permaneçam leais a mim! Graças à sua extraordinária memória e também ao incessante fluxo de informações sigilosas que corriam pelo palácio, nosso monarca sabia exatamente o valor da fortuna de cada cortesão. Mas o conhecimento dessa contabilidade, ele guardava somente para si: e o utilizava apenas quando desconfiava de que alguém não lhe estava sendo leal. Bastava ele vislumbrar uma sombra de deslealdade para confiscar tudo do desgraçado e mandar para longe aquela ave-do-paraíso! Graças a essa contabilidade, o Rei dos Reis tinha todos na mão. E todos sabiam disso". Será mesmo que essa permissividade com a corrupção só se vê na Etiópia de Hailé Selassié ou pode ser detectada bem mais perto do que imagina o nosso vão conhecimento da história política contemporânea?
Pois o livro de Kapuscinski tem o mérito adicional de permitir que se tracem paralelos com, por exemplo, a Polônia stalinista onde o jornalista nasceu em 1932. Como observa o jornalista Mario Sérgio Conti, no posfácio de O imperador, "ao falar da autocracia etíope, de seus ministros medíocres e corruptos, do medo disseminado, das pompas oficiais em contraste com a pobreza dominante, Kapuscinski na verdade estaria falando do stalinismo polonês, de seus burocratas aproveitadores, da repressão política, da apatia social: a Etiópia do livro serviria de metáfora para a Polônia talinista". Somente para a Polônia stalinista – perguntaria o leitor brasileiro – ou, aqui nos tristes trópicos e na terra da felicidade propagada pela indústria do turismo, o livro-reportagem, quase três décadas depois, conservaria sua brutal atualidade?
Passemos, portanto, a alguns episódios narrados pelo jornalista polonês que favorecem tais paralelismos. Para apresentar ao mundo um verniz de desenvolvimento, enquanto fora da corte a população morria de fome, "o infatigável amo vivia viajando, inaugurando pontes, novas cidades, edifícios, aeroportos e batizava todos com o seu nome", conforme depoimento de um serviçal da corte. Enquanto o país vivia a miragem de um progresso fictício e insustentável, posto realizado com empréstimos estrangeiros, os estudantes universitários diziam que não se podia falar em desenvolvimento se a miséria continuava a mesma". E indagavam: "Que desenvolvimento é este, se o país está esmagado pela pobreza generalizada, se províncias inteiras morrem de fome, se são poucas as pessoas que se podem dar ao luxo de possuir uma par de sapatos, se só um punhado de súditos sabem ler e escrever e se quem contrai uma doença mais séria acaba morrendo por não haver hospitais nem médicos? Só se vêem ignorância, e barbárie, humilhações, despotismo, tirania, exploração e desespero por todos os lados...". As críticas dos estudantes eram respondidas com a invasão da universidade, espancamentos, prisões e mortes, determinados por um império que mantinha o excludente Ministério dos Altos Privilégios.

Em um dos momentos em que não dá voz aos palacianos, Kapuscinski releva que "a maldade e a torpeza eram requisitos indispensáveis para alguém ser agraciado com o título de nobreza, serviam de critério para o monarca escolher seus favoritos e cobri-los de benesses e privilégios". É claro que o monarca tomara também atitudes nobres. Uma delas foi abolir o costume medieval de que um acusado de homicídio (acusado, apenas) fosse esquartejado pelo membro mais próximo da família da vítima. Outra foi a supressão do "método afarsata" ("quando um crime era cometido em algum lugar, as forças de segurança cercavam o vilarejo ou a cidadezinha e deixavam a população inteira passar fome até que o culpado fosse denunciado"). Mas o perfil do rei que prevalece no livro é traçado pelo jornalista na página 116 de O imperador: "Hailé Selassié era ao mesmo tempo uma figura simpática, um político astuto, um pai trágico, um sovina patológico, que condenava inocentes à morte e inocentava culpados, tudo de acordo com os labirintos da política palaciana e sua impenetrável ambigüidade".

Quando foi desentronizado pela jovem oficialidade do exército, em 12 de setembro de 1974 – 14 anos depois de sufocar um golpe de estado e quatro anos antes de morrer confinado em um dos seus palácios, aos 82 anos de idade e ainda julgando-se imperador –, Hailé Selassié I foi acusado de possuir, em bancos estrangeiros, uma fortuna de mais de meio bilhão de dólares. Mas, para muitos, como na canção baiana, continua sendo apenas um rei que, com jamaicana animação, gostava de reggae.
Serviço
O imperador, de Rysard Kapuscinski São Paulo: Companhia das Letras 2005
192 págs RS33