sábado, 6 de setembro de 2008

A evolução e a natureza

ANTONIO CICERO
NORMALMENTE SUPÕE-SE que o grande escândalo causado pela teoria da evolução seja devido à descoberta de que o ser humano descende de alguma espécie de macacos. De fato, isso foi sem dúvida um escândalo espetacular, uma enorme "ferida narcísica", como dizia Freud, infligida ao homem que aprendera ter sido criado à imagem de Deus. Mas a teoria da evolução provocou também outro escândalo que, embora menos espetacular, não é menos importante. Trata-se da relativização das espécies naturais. Desde Aristóteles, supunha-se que, criadas ou não, as espécies naturais fossem imutáveis.
A espécie à qual um ente qualquer pertencia era considerada a sua natureza. Descobria-se essa natureza a partir do estudo dos espécimes que se encontravam, como dizia Aristóteles, num estado natural, em oposição aos espécimes "degenerados". Como sabemos que um espécime se encontra no estado natural? Pela observação da sua normalidade, isto é, do fato de que sua constituição física e seu comportamento não desviam da constituição e do comportamento da maior parte dos indivíduos da mesma espécie. O anormal, ao contrário, é considerado degenerado. Desse modo, a normalidade se torna normativa. O degenerado é aquele que se constitui ou se comporta contra a sua natureza: "contra naturam".
Pois bem, observando a natureza humana e a natureza da sociedade humana, Aristóteles conclui que o natural é que a alma governe o corpo, a inteligência, os apetites, o homem, os animais, o macho, a fêmea, e o senhor, o escravo. Para ele, essas relações são naturais, e qualquer supressão ou inversão delas se daria contra a natureza. Do mesmo modo, o velho Platão, na sua última obra, pressupõe que a finalidade do erotismo, no indivíduo natural/normal, é a reprodução; logo, considera contra a natureza toda relação homossexual. Esta última concepção se consolidou na Idade Média e é até hoje doutrina da Igreja Católica, para a qual toda relação homossexual infringe uma "lei natural".
Tal "lei" não passa, evidentemente, de um equívoco, pois as leis da natureza, que são descritivas, isto é, que dizem o que realmente acontece, não devem ser confundidas com as leis humanas, que são prescritivas, isto é, dizem o que deve (ou não deve) ser feito. A lei da gravidade, por exemplo, não diz que todos os corpos que têm massa devem se atrair de determinado modo e sim que se atraem desse modo. Se for descoberto que determinados corpos têm massa e, no entanto, não se atraem do modo previsto, não serão esses corpos que estarão errados, mas a lei da gravidade. Assim também, se uma "lei natural" diz que os indivíduos do mesmo sexo não sentem atração erótica uns pelos outros, basta abrir os olhos para ver que essa "lei" está errada, ou melhor, não é lei, não existe.
A teoria da evolução mostrou que a própria natureza não é algo fixo de uma vez por todas, mas se encontra em transformação. As espécies biológicas mesmas não têm "naturezas" eternas, mas estão em incessante evolução. Isso significa que não se pode considerar como natural exclusivamente a constituição física ou o comportamento "normal", isto é, tradicional. Uma espécie nova surge exatamente a partir das mutações -da "degeneração" - de uma espécie antiga. O indivíduo que, por ser portador de uma mutação está sujeito a ser considerado uma monstruosidade, talvez seja o limiar de uma nova espécie.
O ser humano é o produto de tais mutações, e sua maior novidade consiste em que não apenas a espécie humana, mas cada espécime humano é infinitamente capaz de mudar a si próprio, capaz de experimentar o que nunca antes se experimentou, capaz de criar o que nunca antes existiu. Toda invenção, toda arte, toda técnica, toda cultura pode ser considerada como o resultado da transformação - poderíamos dizer, da perversão - da natureza pelo homem. O primeiro antropóide a se erguer e usar as patas dianteiras como mãos - abrindo caminho para a aventura humana - estava pervertendo a função "natural" desses membros.
Não é lícito, portanto, invocar a "natureza" para justificar - ou para condenar - tais ou quais comportamentos, atos ou instituições. Quem o faz - ainda que seja um gênio, como Aristóteles - inevitavelmente incorre no provincianismo de "naturalizar" comportamentos, atos ou instituições da sua própria cultura, tais como a dominação do homem sobre a mulher, a escravidão ou - como o velho Platão - a condenação da homossexualidade.

Baianidade para Condoleezza ver

MALU FONTES
Com a globalização econômica e cultural, a mercantilização de tudo e as teses sempre relativistas da pós-modernidade ou modernidade tardia, é chover no molhado discutir o que é natureza ou cultura, construção ou essência, cópia ou autêntico, manifestação cultural ou pastiche para atender às necessidades do mercadão de miudezas em que só imperam mesmo o arremedo e o descarte. Desse contexto não foge a tão propalada e quase nunca entendida baianidade. Afinal, o que essa tal de baianidade tem real ou de arremedo tosco para estrangeiro ver, políticos usarem, gente sem talento enriquecer e publicitário criar slogans que de tão ruins são ótimos? Se parte-se do princípio de que cada povo tem em sua história suas especificidades culturais, é inegável que a Bahia é, entre os estados brasileiros, um dos mais privilegiados com um caldo de cultura rico, denso e diverso. E essa afirmação não é apenas mais uma tese dessas batidas que consideram o baiano o rei da cocada preta e atribuem selo de qualidade, diversidade e riqueza a tudo o que se alcunha de cultura e é produzido na Bahia. Ao contrário: apesar desse berço cultural riquíssimo herdado pelos baianos, o que se produz de lixo como se valor tivesse é imensurável. Uma coisa, no entanto, é falar em cultura baiana. Outra, bem diferente, é falar em baianidade. Para falar da primeira, nada mais recomendável que mergulhar nas abordagens irretocáveis de Antonio Risério. Beirando a poesia, o antropólogo e poeta explica que esse vasto patrimônio cultural do qual a Bahia dispõe deve-se a um período econômico, social e histórico turvo, cujo início se dá quando da mudança do status de capital, de Salvador para o Rio de Janeiro. A Cidade da Bahia, então, mergulha num período longo e radical de ostracismo, abandono e esquecimento. Risério o chama de os 100 anos de solidão da Bahia. Para compreender melhor esse ensimesmamento baiano, outro aspecto importante é lembrar que, tanto o que se chama de cultura baiana quanto de baianidade devem ser compreendidas como sinonímicas de um conjunto de repertórios, práticas e comportamentos limitado a Salvador e seu entorno, o recôncavo. Nisso, a Bahia é meio madrasta, pois todo aquele mundão de meu Deus equivalente ao interior do estado raramente tem espaço na fita espetaculosa da qual sempre os produtores de cultura da capital lançam mão quando se trata de vender o que é mesmo que Bahia tem. Recentemente, houve um grande 'e$$forço' estatal para vender o São João do interior, é verdade. Mas a infra-estrutura existente é de dar dó e, vendê-la como se assim não fosse, beira o estelionato publicitário direcionado para paulistano endinheirado ver e vir, previamente seduzido pelos carnavais fora de época. Uma coisa é uma coisa, o Carnaval. Outra coisa é outra coisa, o São João. Os cem anos durante os quais Salvador amargou um ostracismo quase absoluto, quase como uma casa isolada cujos moradores não recebem visitas e perdem possibilidades de fazer trocas simbólicas, limitando a recepção de influências do outro, do estrangeiro, daquele que vem de outro lugar, fizeram com que a cultura do recôncavo depurasse, consolidasse-se, transformasse-se num caldo espesso e resistente para sobrevier a séculos e hoje alimentar manifestações e recriações de toda ordem. Essa á a cultura baiana que, embora construída secularmente entre índios, negros, portugueses, mestiços, tem sim algo de essencial, no sentido de específico desse pedaço de Brasil arrodeado pela Baía de Todos os Santos. Aí, vem o século XX, a industrialização, o progresso tecnológico, a riqueza que já não vem do que sai da terra, mas das engrenagens maquinímicas. Entram em cena uma nova forma de se fazer política: a estetização e a espetacularização. Nisso, o carlismo foi de um talento irretocável, como apontam magistralmente os textos do cientista político Paulo Fábio. Praticamente o estado político-burocrático e a engrenagem de mercado inventaram a baianidade. Chamaram uma penca de publicitários desses que a Bahia produz às dúzias, misturou-se alguns ingredientes da cultura baiana e nasceu a baianidade, ligeira, prematura, superficial, envernizada em uma beleza ofuscante. Descobriu-se que o negro era lindo, desde que na fotografia da Bahiatursa, da Emtursa, e 'fantasiado' de negro espetacular, feliz e conformado. Baianidade é, portanto, um apelido comercial, digerível e fascínio daquele caldo cultural espesso. Alguns dos seus aspectos têm um quê de charme, de malemolência, de vender a tese de que todo baiano é especial, artista – quando muitos estão mais para arteiros. O berço e o túmulo da baianidade é, a um só tempo, o seu uso político e caricaturalmente comercial, que muitas vezes arrasta o verbete para a fronteira do ridículo. Cultura baiana é a Irmandade da Boa Morte, o sincretismo religioso, as palavras lúcidas da Iyalorixá Mãe Stella sobre a história do Candomblé, a capoeira, a Festa de Iemanjá, a culinária, o som dos berimbaus e tambores, a música de Caymmi, o jeito de corpo dos meninos e meninas das periferias. Já baianidade é um leque amplo de salamaleques inventados pelo mercadinho de miudezas descartáveis e pelas elites políticas via publicidade. É a baianidade que transforma Condoleezza Rice e Naomi Campbell em deusas do ébano importadas, enfia em ambas umas fitinhas do Senhor do Bonfim feitas em São Paulo com tecido vagabundo sintético chinês – e que por isso não partem nunca. É a baianidade que leva o vendedor de côcos a - de cara amarrada – cobrar por um deles um pouco mais, um pouco menos de um real a um baiano com sede na rua; e a, pelo mesmo côco, já com dentes arregalados de sedução, cobrar cinco reais ou mais a um turista desavisado. A baianidade que acha linda a negritude do Olodum enfeitando a carreira de Michael Jackson e Paul Simon é a mesma que se trai em sua hipocrisia e sobe nos tamancos, horrorizada, quando Sérgio Guerra espalha por Salvador fotos gigantes de negros comuns, periféricos e de verdade, capturados pelas lentes lá no núcleo real da cultura baiana. MALU FONTES é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas e professora da Facom-UFBA.

Senhor dos mares luso-afro-brasileiros

MARLON MARCOS

Algumas mortes são, verdadeiramente, encantamento. E este se traduz não pela falta que alguns deixam e, sim, na força da presença insolúvel de alguém que a poderosa morte não apaga da história de um país.
Morreu, fisicamente, o maior maestro, orquestrador, da cultura popular do Brasil. Um músico nascido das entranhas do povo que, de tão genial e longevo, serve como síntese de outros nomes memoráveis como Chiquinha Gonzaga, Noel Rosa, Pixinguinha, Assis Valente, Lupicínio Rodrigues, Ataulfo Alves, Cartola, Mário Lago, Batatinha e Ari Barroso.
Morreu o inventor lítero-musical de um lugar chamado Bahia. Uma Bahia circunscrita no Recôncavo do estado onde nasceu Caetano Veloso. Morreu - no silêncio sofrido dos seus 94 anos, carregando no próprio corpo o peso da gratidão dos seus conterrâneos pelos desenhos de beleza que ele cantou em nome de sua mítica baianidade.
Morreu a voz dos recantos longínquos da negra Cidade da Bahia - aquela que, nos anos 30, pululava com suas quituteiras, ganhadeiras, fateiras; filhas-de--orixá, mulatas arrojadas, brancas disfarçadas, católicas macumbeiras. A cidade marcada de mar e de pescadores; cidade de tambores a misturar dor e alegria, prazer e insatisfação - e, mais que tudo, fé.
Cidade da palavra em disparada, do português cheio de expressão quibundo, quicongo, iorubá, árabe, tupi-guarani; dos discursos preciosistas, eloqüentes, inflamados, ininteligíveis, barrocos, cantados.
O FAVORITO DE IEMANJÁ - Morreu o poeta maior da celebração - o mar dos baianos e dos brasileiros. O poeta do canto grave e certeiro a iluminar os feitos da cultura amalgâmica entre negros e brancos e a narrar o cotidiano de uma Salvador que foi eternizada nas melodias e nos versos deste nosso cantador.
Morreu o aedo favorito de Iemanjá, o orixá feminino mais aludido e por ele decantado, ícone divino que, vinculado ao mar, mais apareceu em suas canções. Iemanjá - rainha das ondas verdes do mar, a mãe-mulher dos pescadores, que inspirou também Jorge Amado a escrever seu célebre Mar Morto.
Morreu o altaneiro inventor da baiana estilizada de Carmen Miranda, o fotógrafo melhor das belas pretas do acarajé; o homem da voz e do violão construindo histórias, consolidando a civilização da Bahia, imaginando com o coração o ser e o estar do povo do qual ele foi o patriarca.
Morreu o homem Dorival Caymmi. Encantou-se, em sua luz de eternidade, um dos artistas mais importantes da história da canção no mundo. O artista que se imprimia de um lugar, herdeiro de uma luso-afro-brasilidade, senhor de um trânsito universal pela qualidade sem fronteiras da sua inventividade.
O homem das canções simples e sublimes - ideólogo da práxis entre saber erudito e saber popular; artista extremo do êxito do popular entre os humanos que marcou a grandeza das vozes femininas: Maria Bethânia - a Maricotinha reverente e precisa do compositor; Gal Costa, monstruosa doçura que o homenageou com sua voz instrumental em um disco eterno; Jussara Silveira, primorosa cantora re-embalando o mestre; Adriana Calcanhotto - nobreza, destreza, limpidez, acenando para o marítimo caymmiano; Bete Carvalho - iluminando-se-nos com o viés sambista do compositor; Elis Regina - emprestando o enorme talento à música de Caymmi; Clara Nunes - expandindo fé e musicalidade na obra do poeta; Mônica Salmaso - luminescência na singularidade de Dorival; Stella Maris, das raias da Bahia, o canto lindo de sereia. E, por fim, sendo o começo, Nana Caymmi, produto inteiro do gênio, uma das maiores cantoras deste planeta, mítica intérprete do pai.
A saudade toma conta da Bahia. Sobre a perda de Caymmi nessa inexorável ação da morte, sentimos por ele o alívio de uma vida lindamente cumprida e entregue a relatar e a inventar os feitiços do povo baiano.
O velho marinheiro se foi, conduzido por Iemanjá, sua mãe (e nossa) consoladora; encontra-se com seu parceiro maior nesses assuntos de baianidade, o amado Jorge. E pra orar, lembrar, cantar Caymmi, a música e as palavras de outro mestre, Gilberto Gil, em Buda Nagô.
Adormeceu o nosso João Valentão nos braços da terra que ele ajudou a inventar: uma parte do Brasil que fica entre Minas, Pará, Maranhão, Pernambuco, São Paulo e, ainda mais, Bahia e Rio de Janeiro.
MARLON MARCOS é jornalista, professor e mestre em estudos étnicos e africanos pelo Ceao/Ufba.