domingo, 23 de maio de 2010

Prova contra infidelidade virtual vale sem quebra de sigilo

Use corretamente o papel higiênico

João Ubaldo Ribeiro

Creio que sempre tivemos a mania de regular a conduta alheia e estabelecer normas para atos que não deviam ser da conta de ninguém, exceto os envolvidos. Mas, ultimamente, parece que isso está deixando de ser um vício burocrático, para virar moda. Todo dia algum brioso engenheiro social inventa regras para a nossa conduta, muitas delas com a finalidade de nos proteger de coisas contra as quais não queremos ser protegidos, como acontece com as novas disposições relativas a balcões e prateleiras de farmácias. E, povo acostumado a comportar-se como se direitos básicos, a exemplo da liberdade de ir e vir ou de pensar e expressar-se livremente, constituíssem outorgas do Estado, somos cada vez mais tiranizados por esses abusos e, daqui a pouco, se não prestarmos atenção, teremos de preencher um formulário do Ministério da Saúde, justificando nosso pedido de carne vermelha num restaurante.

Lembro a tentativa de regular nossa linguagem, através da adoção de termos e expressões politicamente corretos. Seus proponentes afirmavam que se tratava apenas de sugestão, mas, por obra de nossa índole ovina, é claro que, dali a poucas semanas, estaria o Brasil inteiro usando a língua pasteurizada que imaginavam ser a adequada ao bom convívio social. Não duvido nada - e, sinceramente, não acho que estou exagerando muito - que baixem normas para a utilização do papel higiênico. Apareceriam especialistas e se produziria uma exposição de motivos em que se aludiria às várias posturas adotadas em relação ao delicado problema, provavelmente a escola centrífuga, a centrípeta e a eclética. Em mais uma demonstração do engenho nacional, todas as três seriam rejeitadas, em favor do padrão brasileiro, único no mundo e o mais avançado entre todos. A desobediência às normas implicaria sanções, mas ninguém precisaria ficar preocupado com a invasão de sua privacidade, pois o monitoramento do uso de papel higiênico só seria realizado depois de autorização judicial. Quem quiser que pense que isto é delírio.

Agora está em curso no Congresso Nacional a chamada lei da palmada, projeto que pretende tornar ilegal qualquer castigo físico de crianças, inclusive eventuais palmadas dadas pelos pais. Certamente estão incluídos aí puxões de orelha, beliscões, cascudos, petelecos e até mesmo empurrões, se bem que a epistemologia do empurrão deva dar algum trabalho, na hora de distinguir o empurrãozinho do maltrato. Isso, contudo, perde em complexidade para o banho. Como não ignoram muitos pais e a figura ilustre do Cascão não me deixa mentir, há crianças que, levadas ao banho, agem como se estivessem sendo esfoladas vivas. Para quem o abomina, banho não será violência? De que jeito a mãe agirá, até para não ser denunciada às autoridades pelo filho? Suponho que, no espírito da lei, contratará um psicólogo para, com alguns meses de trabalho, induzir o imundinho a se lavar, tudo muito prático, racional e moderno.

Leio também que o projeto prevê que os pais pilhados dando palmadas nos filhos terão de submeter-se a consultas com psicólogos ou psiquiatras. Quer dizer que, se o sujeito der uma palmada no filho, vai ser considerado de alguma forma anormal, doente mental ou desajustado e se verá obrigado a ser normal, sob as penas da lei. Que diabo é ser normal? É o que o psiquiatra me diz? Ele sabe o que é normal? Que é um indivíduo bem ajustado? Isso não é uma questão científica, é uma questão de valores, não é um problema para o método científico, é um problema filosófico. Não pode haver definição científica da conduta "certa". Todos sabem que quem é doido num contexto pode não sê-lo em outro e o bom ajustamento social às vezes não passa de conformismo, pobreza de horizontes, mesmice e ausência dos questionamentos que movem pessoas e coletividades. Agora o que se pretende é que muitos de nós nos vejamos ameaçados pela perspectiva de que nos impinjam como compulsória a visão de normalidade de um psiquiatra ou psicólogo. E, se os pais se recusarem a essa consulta ou tratamento, estarão sujeitos a alguma pena adicional, perderão o pátrio poder, serão internados numa clínica especializada? E, se o consultado disser que o psiquiatra é um cretino e se recusar a seguir suas prescrições, sofrerá as mesmas punições? Será encaminhado a uma junta onisciente de psicodoutores, cujo laudo irrecorrível poderá render-lhe interdição ou prisão? Quiçá lobotomia, para os casos renitentes? Duvido muito que os psiquiatras concordem com isso, a não ser os que alimentem fantasias de transformar o mundo num grande manicômio, entre neurolépticos, ansiolíticos, antidepressivos e sossega-leões.

Apresentam-se os argumentos habituais de que a Suécia, o Zuribequistão Exterior e a Baixa Eslobóvia adotaram legislação semelhante. Os suecos vão à praia nus, na companhia de vizinhos, família e amigos. Aqui, devido a nosso vergonhoso atraso, isso é suruba. Ou seja, o que é bom para sueco é bom para sueco e não há razão para crer que o que funciona lá seja verdade universal. Se o sueco queima a rosca, queimá-la-emos nós também? O Estado não consegue, em lugar nenhum do Brasil, tirar as crianças abandonadas da rua, prevenir as sevícias medonhas sofridas por elas e denunciadas todo dia, dar horizontes a milhões de meninos e meninas. Mas agora, na esteira de seus inúmeros êxitos nessa área, acha de criar novas leis, como se as existentes, cumpridas fossem, não bastassem folgadamente. Vão se catar, vão procurar o que fazer, chega de besteirol, chega de nos empurrar burrice inconsequente goela abaixo. Bem melhor fariam, se cuidassem das reformas que realmente importam, as esquecidas que nunca foram feitas, a tributária, a administrativa, a política, a... Sim, e vejam se consertam a safadagem sem lei e sem ordem em que, para a maioria dos brasileiros, o Congresso e a política se transformaram.

Palmada não pode. Tiros, sim

Malu Fontes

Nada mais inverossímil que o comportamento dos parlamentares brasileiros, de todos os níveis: dos vereadores das câmaras mais paroquiais do Brasil profundo aos nobres e respeitáveis senadores da República. Embora o tema televisivo da semana tenha sido o sorriso amarelecido prematuramente do presidente Lula logo após o que se considerava como tendo sido o maior feito da diplomacia nacional na história deste país, a intermediação do tal acordo com o Irã, eis que entra na cena política televisiva um parlapatão com mandato, destes que nem Dias Gomes nem Aguinaldo Silva conseguiriam construir ficcionalmente com tamanha falha de caráter.

O personagem político brasileiro do telejornalismo na semana não foi o presidente Lula, frustrado em seu papel de mediador da paz em turnê pelo mundo, tampouco os pré-candidatos em romaria país adentro em busca de votos, mas o senador paraibano, do DEM, Efraim Morais. Não bastassem todas as regalarias e vantagens financeiras inerentes ao cargo e mandato de senador, Morais viu que poderia ser mais criativo e embolsar mais algum. Sacou os nomes de duas moças pobres de Brasília, tomou-lhes endereços e procurações assinadas. Tudo a fim de dar-lhes uma ajuda de custo educacional, no valor de R$ 100 mensais. Meses e meses se passam, uma das moças arruma um emprego, vai abrir uma conta e, só assim, descobre que ela e a irmã são funcionárias do Senado há tempos, lotadas no gabinete do Senador do DEM, cada uma com um salário de R$ 4 mil, religiosamente pago todos os meses (e sacado, embora nunca por elas) há mais de um ano.

NECESSITADO - Ingênuo o eleitor que suponha que a falha de caráter dos ilustres senadores da República esbarra na nomeação de funcionários fantasmas que sequer sabem que são empregados públicos, com cargos de confiança e salários invejáveis, e, no fim do mês, embolsam ilicitamente milhares de reais. O senador paraibano foi mais longe. No final de 2009, de posse dos rendimentos das funcionárias que foram suas nem nunca terem sido, fez minuciosamente a declaração do Imposto de Renda de ambas, enviou para a Receita e, de posse do recibo, foi ao Banco do Brasil e, acreditem, solicitou a antecipação da devolução do IR. Em tempo de campanha, compreende-se: o senador deve estar necessitado.

Ao mesmo tempo, bem perto dali, do Senado Federal, a Câmara aprovou um projeto de lei mimoso, desses voltados para atender às criancinhas desamparadas desse país que têm o luxo de terem casa, família e um pai e uma mãe que, um dia ou outro, pensando educá-las, posam cair na tentação de dar-lhes uma palmadinha. Um projeto da deputada federal pelo PT do Rio Grande do Sul, Maria do Rosário, proíbe a palmada (não, não se trata de surra, de maus tratos, de violência contra a criança, mas tão somente da velha e didática, dizem, palmadinha). O projeto vai, agora, para o Senado, a casa do senador Efraim, e, se aprovado, pais e mães que derem palmadas nos filhos podem ser punidos. Uma telespectadora do jornal Hoje, o mais voltado para donas de casa sensíveis, escreveu a Sandra Anemberg na quarta-feira contando que foi dar uma palmada na filha e a criança gritou que, se ela o fizesse, chamaria a Polícia. A coisa é séria e entre as sanções aos pais acusados está, entre outras penalidades, a submissão involuntária a tratamento psiquiátrico.

FURADEIRA E MORTE - Na prática, todos os pais podem traduzir leis como essa nos seguintes termos: pais e mães que se esforçam para educar seus filhos de acordo com seus princípios e sua autonomia doméstica serão, uma vez aprovada a lei anti-palmada, proibidos de aplicar a menor delas num filho. Mas podem ficar sossegados, porque dos castigos grandes seus rebentos não serão poupados pelo cioso estado brasileiro e seus parlamentares zelosos. Palmada de pai e mãe é proibida pelo Estado, mas de espancamentos, assaltos e tiros de marginais, e da Polícia, os filhos do Brasil não estão nem estarão jamais protegidos por lei nenhuma. A Polícia, muito ciosa do seu dever de educar, por exemplo, matou de pancada um motoboy em São Paulo há uma semana porque achou que se tratava de um ladrão. Sabe-se como é: um rapaz jovem, negro, na periferia, numa moto novinha e sem placa, merece um corretivo. No Rio, um policial do BOPE olhou para um a casa no morro na última quarta-feira, viu um homem fazendo algo com uma furadeira elétrica na parede da própria casa, deduziu que era uma arma e atirou para matá-lo, no que foi bem sucedido. Prevenção, argumenta-se.

Para quem não conhece o senador Efraim, deve haver registro no YouTube de duas ações delicadas e recentes dele com a equipe do CQC, da Band. Numa delas, ele empurra o microfone de Mônica Lozzi; em outra diz que vai ‘dormir’ com a mulher e a mãe de Rafael Cortez. Um cavalheiro com mandato, pois. No Rio de Janeiro, o advogado da bruxa loura intumescida de botox e tinta capilar amarelo ovo, acusada de torturar um bebê que adotou, argumenta raivoso na TV que ela, procuradora aposentada da Justiça e com 64 anos, não pode ser julgada pela justiça ordinária, mas em foro privilegiado, dado o seu status. E num país desses os parlamentares querem criminalizar a palmada paterna. Quem sabe algumas palmadas não tivessem sido suficientes para que os ilustres parlamentares brasileiros tivessem um caráter menos duvidoso.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.
Texto originalmente publicado no jornal A Tarde, Salvador/BA, edição 23 de maio de 2010.