segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Jussara Silveira, Wisnik e Netvroski na poesia dos sons




por Mauro Ferreira


Título: Projeto Interseções
Artista: José Miguel Wisnik, Jussara Silveira e Arthur Nestrovski
Local: Sala Cecília Meirelles (RJ)
Data: 3 de outubro de 2008
Cotação: * * * * ½


Pianista e compositor, Zé Miguel Wisnik é dono de refinada obra de textura poética que pede vozes de técnica apurada e registro mais cool - como a voz límpida de Jussara Silveira, cantora que, à vontade, dividiu o palco com Wisnik e com o violonista (e também compositor) Arthur Nestrovski num envolvente espetáculo que embaralhou os conceitos de música e poesia, tangenciando o universo erudito.

Apresentado na Sala Cecília Meirelles (RJ), dentro do projeto Interseções, o recital apresentou roteiro irretocável que combinou músicas de Wisnik e quatro versões de temas de compositores eruditos como o austríaco Franz Schubert (1797 - 1828) e o romântico alemão Robert Schumann (1810 -1856). Assinadas por Nestrovski, como títulos como Clara e Serenata, tais versões tentam com êxito se enquadrar no universo da canção brasileira. Cantadas por Jussara, com Wisnik ao piano e Nestrovski no seu virtuoso violão, estes temas responderam por alguns dos muitos momentos em que o recital beirou o sublime. E a inclusão no bloco de Morena do Mar, de Dorival Caymmi (1914 - 2008), acentuou o parentesco brasileiro buscado por tais versões.

Mesmo sem grande volume, a voz de Wisnik serve bem às suas músicas - como ficou claro logo no número de abertura, quando o compositor entoa Tempo sem Tempo. Mesmo sem estar em atividade durante parte do show, Jussara brilhou a cada vez que solta a voz, como no choro Bambino, como no Baião de Quatro Toques - em dueto com Wisnik - e como em O Último Domingo, versão de música polonesa incluída na trilha sonora do filme O Sol do Imperador. Uma clima de salutar estranheza pontuou roteiro embebido em pura poesia.

Se Mortal Loucura apresenta melodia de Wisnik sobre versos de soneto do poeta barroco baiano Gregório de Matos (1636 - 1696), Anoitecer - um dos números de maior beleza - insere o poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987), do livro A Rosa do Povo, na sofisticada atmosfera musical do recital. Os poetas aprovariam. Falante, Wisnik divertiu a platéia ao recortar a aventura (única até o momento na música brasileira) de ter aceitado a incubência de criar uma letra para melodia já pronta de Chico Buarque. Tarefa difícil, pelos sinuosos contornos melódicos do tema, intitulado Embebedado, lançado por Gal Costa (no disco Hoje, de 2005) e revivido por Wisnik com inflexões que permitiram ao espectador perceber a engenhosa sintonia entre música e letra.

Entre versos de poetas como Antonio Cícero e Eucanaã, musicados tanto por Wisnik como por Netvroski, o recital se desenrola sedutor. Sobretudo quando Jussara Silveira assume também o microfone para fazer dueto com Wisnik em músicas como Pérolas aos Poucos e, no bis, As Pastorinhas, a bissexta parceria de João de Barro, o Braguinha (1907 - 2006), com Noel Rosa (1910 - 1937). Luxo só.

Até Nelson Rodrigues (1912 - 1980) entrou na dança poética do trio. Depois de cantar A Serpente, tema que compôs para montagem da peça homônima do dramaturgo, Wisnik emendou na seqüência Pecado Original, a música feita por Caetano Veloso - também dentro do passional universo rodriguiano - para o filme A Dama do Lotação. Enfim, um excelente show que, ao combinar versos e melodias com acabamento de alta qualidade, expôs toda a poesia contida no som "pensante" de Wisnik, Jussara e Netvroski.

Sem proteção

Lince ibérico (à esq.), diabo da Tasmânia e cervo do Pai Davi estão entre os mamíferos ameaçados de extinção, em diferentes graus
Paulo Passos

3ª Mostra de cinema e direitos humanos na América do Sul

Salvador - 10 a 16/10 Sala Walter da Silveira - Rua General Labatut, 27 - Barris
(71) 3116-8100

Juventude maltratada

Defensoria pública da Bahia
EMILIANO JOSÉ
Agiu de modo absolutamente correto a defensora pública Maria Carmem de Albuquerque Novaes ao contrapor-se ao fato, absolutamente condenável, de quatro adolescentes em conflito com a lei terem sido transportados por 429 km na carroceria de uma caminhonete da Polícia Civil. Os jovens fizeram essa viagem, de Itabuna a Salvador, algemados. Não fosse a imprensa, A Tarde de modo especial, não fosse a defensora pública, e provavelmente isso passaria como algo absolutamente natural. As algemas foram presas na grade de proteção do vidro traseiro da caminhonete. Esses jovens sim, diferentemente dos brancos que foram presos na Operação Satiagraha, foram tratados de modo cruel e desumano. “Como mercadorias”, diria Carmem Albuquerque. Pior, eu diria. Com mercadoria normalmente há um cuidado maior. Os jovens infratores, cujas idades variavam entre 13 e 17 anos, viajaram entre as 4 e 10 horas e a situação deles, ao chegarem à Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac), em Salvador, era tão deplorável que os funcionários da instituição acionaram a Defensoria Pública do Estado. Sentiram frio, sentiram calor, tiveram fome. Pediram água. Pediram comida. Ninguém os ouviu. Não foram tratados sequer a pão e água. Nem pão nem água. Só comeram quando chegaram à Fundac. Carmem Albuquerque, que é defensora pública especializada na defesa dos direitos humanos da criança e do adolescente, fez um ofício ao juiz de Itabuna, Marcos Bandeira, que autorizou a viagem, à coordenadoria da Polícia Rodoviária Federal. Depois, Carmem Albuquerque ingressou com uma representação contra o juiz Marcos Bandeira junto à Presidência do Tribunal de Justiça. Vamos ser verdadeiros: são ainda as marcas da Casa Grande. Ninguém pode tratar seres humanos dessa maneira, quanto mais adolescentes que estão sob a guarda do Estado. O Brasil tem uma legislação avançada, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece a prioridade absoluta na proteção às crianças e adolescentes. Especificamente o Artigo 178 do ECA proíbe a condução de adolescentes em condições vexatórias ou que o coloquem em risco a vida e a saúde. Há muitas responsabilidades, mas a do juiz é a maior. O Código Nacional de Trânsito proíbe a condução de pessoas em compartimento de carga e exige o uso de cinto de segurança. E os jovens passaram por vários postos da Polícia Rodoviária. A Polícia Civil os conduziu. Mas é inegável que o adolescente em conflito com a lei está à disposição do Poder judiciário e mesmo quando da transferência de um ou de vários deles a responsabilidade é do juiz. Ele não pode se esquivar dessas responsabilidades. E tudo isso foi argumentado pela defensora Carmem Albuquerque. A Defensora Pública, que tem tido o apoio decisivo do governo Wagner, cumpriu a sua missão. Esperemos pelos desdobramentos.