domingo, 14 de setembro de 2008

Pelourinho não é só cartão

MARCOS DIAS "Toda a riqueza do baiano, em graça e civilização, toda a pobreza infinita, drama e magia nascem e estão presentes nessa antiga parte da cidade", escreveu Jorge Amado sobre o Pelourinho, em 1944, no livro Bahia de todos os santos - Guia de ruas e mistérios. Com várias reedições até hoje, o livro acabou se tornando, nas palavras do autor, uma "enciclopédia da vida baiana". Personalidades, lugares históricos e quase que um classificado de serviços e profissionais da preferência do escritor faziam parte da cidade onde, alertava aos visitantes, há "permanente miséria e imbatível alegria". Sessenta e quatro anos depois, o que há da permanente miséria pode ser visto também no verdadeiro museu a céu aberto em que o Pelourinho se transformou, por força dos projetos oficiais de turismo, com seus pedintes profissionais, ambulantes e gente em promoção. A imbatível alegria? A imbatível alegria, agora, parece que depende apenas do consumo cultural, idealizado desde os anos 60 e 70, quando o Estado passou a ver no antigo bairro do Maciel as possibilidades de transformação num shopping center a céu aberto. Mas há uma pergunta – que não quer calar – de quem viu o Pelourinho brilhando no espetáculo technicolor e com som dolby stereo da reforma iniciada em 1992. O que houve com o Pelourinho? Saberão os gestores da coisa pública? Os moradores das bibocas? Os de rua? Os comerciantes? Osíris, aquele deus dissimulado do sambareggae, cuja imersão nem ele mesmo sabe como aconteceu? Margareth Menezes saberá? Eu falei Faraó! Assim, não Imagine Alaíde do Feijão, famosa por sua...feijoada, diante de uma máquina de costura em pleno salão do seu restaurante, no Pelourinho. "Tô aqui me distraindo porque o Pelourinho está uma maravilha", ironiza a talentosa cozinheira, autora não só de feijoadas (carioca e baiana), mas de uma rabada poderosa. Pois, Alaíde anda pensando em parar de fazer essas coisas porque diz que, depois do Carnaval, o Pelourinho ficou, olhe só, parado, e ela não tem mais como administrar dívidas. Mas, Alaíde, o que é que o povo vai fazer quando quiser comer seu feijão, com aquela pimentinha e, de quebra, o quebra-queixo que você serve? Mesmo porque, hein Alá, você conhece muito bem este pedaço do mundo, tombado pela Unesco, vá lá, mas pedaço do mundo. Estamos no mesmo barco neoliberal – naufragando ou recitando "navegar é preciso". E como você mesma diz: a iluminação está fraca, mas os ladrões aqui são os mesmos de sempre.
Elisabete Riggi, da pizzaria Rômulo e Remo, viu o seu negócio praticamente mudar de área ao virar um albergue para 20 pessoas, que esperam ela fechar a casa para dormir na varanda. Lá estão, talvez, as melhores pizzas da cidade, e você acha que ela está satisfeita com isso? E Bia disse uma coisa bizarra: ela já foi roubada no Pelourinho, mas por turistas estrangeiros! Uma mídia negativa, de acordo com Bia e Alaíde, também afastou o público. Mas que midiazinha é essa, que fica mostrando gente fumando crack, mas não promove debate público sobre os problemas? Como se, no metrô de Paris, turistas também não fossem assaltados. Bruno Guinard, diretor do hotel Villa Bahia é quem me disse isso. Para ele, o Pelourinho é um produto turístico único no planeta, com potencial gigantesco, mas que não está sendo bem explorado. ”A riqueza de Salvador é o centro histórico”, sentencia. E a imagem de insegurança, a seu ver, é aquilo mesmo: ambulantes, pedintes e dependentes de drogas. O Villa faz parte de um grupo que vai cadastrar ambulantes, mas sabe muito bem que segurança é atribuição do Estado.
Na verdade, o coração do Centro Histórico reflete características da própria Bahia. Claro que não pode ser para sempre assim. Nem que Jorge tenha fixado, em seu amor e raiva, porque não se pode amar sem raiva o que ele chama de "pobreza infinita".
Iraí Galvão, 67, diretora de intercâmbio da Casa do Benin, diz que o problema do bairro é o seu entorno. E essa professora de História da África anda livre, leve e solta pelo Pelourinho, pensando coisas interessantes para a Casa do Benin, como um restaurante. Por que não, Iraí? A idéia é ótima. Não viu que um restaurante naturalista aportou no Cruzeiro de São Francisco há menos de dois meses? Precisava mesmo. E Julival Reis continua fazendo a alegria de tanta gente com seu cravinho. Tem um até que faz com que quem está com muitos problemas esqueça deles, porque é intragável. Como é mesmo o nome, Julival? O engenheiro paulista Mauro Faria, 48, que morou na Bahia de 76 a 78, estava lá na última terça-feira depois de 30 anos e, simplesmente, acha que o Centro está lindo, e só lamenta não ter visto nem ouvido o Olodum. (Se a SET o abordasse ali no Terreiro de Jesus iria ficar de cara no chão porque ele estava tão sóbrio como Quincas Berro D´água, o personagem bebum de Jorge Amado, jamais conseguiu ficar um dia!). Para Faria, a educação é algo que mudou em Salvador: “Todo mundo é simpático no atendimento. O baiano aborda de uma forma que não incomoda, não é de forma insistente. Sem contar que tem aquele sorriso no rosto que a gente não sabe explicar o que é”.
E é desse riso que a gente não sabe explicar o que é que talvez faça o Pelourinho encher seus pulmões de ar, apesar das metáforas de doença que muitos se utilizam para se referir a ele. Nada parece mudar o carinho de alguns baianos pelo local, mesmo os que, como aquele baiano-caricatura do mais-que-infame Zorra Total, não conseguem sair da Bahia, mesmo cansados "do calor, do Pelô, de Dodô e de Canô".
O arquiteto Jorge Mendes, por exemplo, vai ao Pelourinho desde a época da restauração, nos anos 90, e dá sua versão: "O que precisa aqui é de uma restauração humana. O que houve é que se recuperou, mas a ocupação foi desorganizada". Então, a quem cabe organizar? E ele acha o discurso dos comerciantes, que reclamam da programação cultural, mais coerente que o da Secretaria de Cultura. Seu amigo, o restaurador Claudio Lemos, não só vai por lá, como diz se sentir em casa: "Aqui ainda tem alma, só precisa de uma injeção, precisa de uma atitude do governo urgente para salvar isso, sair desse descaso". Ô, seu Governo, olhe o adiantado da hora! Na moral, baianamente falando, se sentir em casa no Pelourinho é mesmo um luxo. Mas não dá para ser Patrimônio da Desumanidade. Cá entre nós, todo brasileiro deveria se sentir em casa no Pelourinho, afinal é ali que a saga alucinada da nossa civilização começa. Em 1999, quando a cidade ainda ecoava o slogan turístico de certo aniversário que dizia "O Brasil começou aqui", era possível ver num daqueles becos, onde se escondem mistérios e espantos, uma placa feita de papelão com a mesma frase, mas com uma seta apontando um buraco enorme no meio da rua. Humor que também nutre o garoto que lhe diz na rua: "Me empresta um real?".
E Tekka Foguete, você já viu por lá? Ela tem suas criações numa das lojas do Mercado Modelo, é artesã e capoeirista (salve, salve Associação Capoeira do Mestre Bimba) e também vai lá sempre. Ela ia até no tempo em que não pegava bem para uma mulher ir ali sozinha: "Mas tinha atitude para isso; não tinha vergonha nem medo", diz. "O Pelourinho é um doente que a família abandonou. Mas não abandono".
Daqui não saio Quem nunca abandonou o lugar é outra Teka, desta vez com um k, e com sobrenome: Teka Show da Bahia. E com uma lista quase interminável de habilitações: "Sou pagodeira, biriteira, relações públicas, comunicação, teatro, compositora e cantora". Nada mal, para quem também é overloquista e declara sem pudor: "Nasci no brega, me criei no brega, mas nunca fui puta. Pra mim, é brega-chique". Aos 61 anos, Terezinha da Paz, desculpe, Teka, sempre morou no Pelourinho, e diante do que vê hoje, tem saudade do passado. "Queria que voltasse o brega”. Tomando seu vinho, ou melhor, cabeça-degalo, na rua Leovigildo de Carvalho, que ela continua chamando de Beco do Mota, Teka diz que ali é lindo no sábado quando acontece o encontro dos aposentados, mas se altera, como se lembrasse subitamente como vive: "Pago meu aluguel de R$100 e não tenho casa, nascida aqui!".
Jurandyr Santana, 70, tesoureiro da Sociedade Protetora dos Desvalidos, localizada no Cruzeiro de São Francisco, fundada em 1832, lembra que, até os anos 50, ali era um local com moradias, com ricos e pobres, e que as famílias foram se afastando do Pelourinho com a chegada do "meretrício", mas também por conta dos incêndios e da impossibilidade de manter os imóveis. "O problema do Pelourinho é de estrutura imobiliária; são imóveis frágeis que se deterioram. O mundo não tem madeira mais para fazer casas enormes".
Se, antes, os desvalidos estavam associados à pobreza, hoje Santana acredita que houve deslocamento para as drogas. "Aqui há poucos desvalidos. Os drogados são tratados como caso de polícia, mas é saúde pública. Pessoas com dependência física são fichadas e, quando saem, voltam às drogas, pois não têm empregos".
Julival Reis, do bar O cravinho, há 20 anos por ali, garante que, mesmo com tantos pedintes, é difícil encontrar um mendigo por lá. Um dos poucos comerciantes que afirma ser privilegiado, pois seu bar sempre tem movimento, sabe que o Pelourinho não é mais barato com o dólar a R$1,70 e vende 24 unidades de camarão a R$10, moela a R$7 e cravinho a R$1,50. Mas, alerta: "Se não houver política pública voltada para a revitalização social, está tudo perdido".
Tudo? O morador de rua e artista plástico Alcan diz que morar na rua não é uma opção. "A rua é muito perigosa, é cruel; e a polícia discrimina. O cara lhe mata por causa de um chapéu, um relógio. De manhã, a gente acorda antes dos trabalhadores". Há pouco tempo sua mãe veio resgatá-lo, porque "estava todo metralhado".
"A pobreza gera violência, e o cara briga por causa de comida. Eles vendem drogas, eu não vendo. Se vendesse, não estava aqui. A droga está associada ao tráfico, que está associado com o Estado. Quem vende tá de boa", raciocina ele, que tem quadros cotados a R$150 e R$350 nas galerias. "Tô na rua, mas não sou da rua. Charles Bukowski bebia pra porra, escreveu vários livros. Jack Kerouac também. Vou voltar a pintar". Fã de Batatinha (cantarola "todo mundo vai ao circo, menos eu, menos eu"), ele aponta outra tragédia dos companheiros de rua: a maioria não sabe ler nem escrever.
É por conta dos deveres não cumpridos por várias esferas do poder público – educação, saúde, segurança e cultura são alguns – que se vê por ali, como se pode ver em toda Salvador, alguém colocar a fitinha do Senhor do Bonfim no braço do outro, dizer que é de graça, dar um nó apertado e depois cobrar R$ 5. Em menos de uma hora, uma pessoa pode estar vendendo peixe num cesto, depois passar vendendo colar e por fim ser transformado em guia, dizendo que a Catedral Basílica é a Igreja do Bonfim. O Egito é a Bahia! Mas, quem tenta fazer algo tem o respeito da população. Valter França, 65, conhecido Mestre Prego, diretor do Grupo Cultural Meninos do Pelô desde 85, mora numa casa com 26 pessoas, entre crianças e adultos. Ele destaca projetos importantes para crianças e adolescentes da comunidade, como o Miúdos da Ladeira, do Theatro XVIII, do qual suas netas participam, e o Oficina das Artes. Prego, que costumava pongar no bonde que passava na hoje estigmatizada 28 de Dezembro, acredita que o que transformou o lugar foram as drogas: "Quando vejo crianças se acabando com essa pedra, eu me acabo". Mas não abre mão de fazer seu trabalho, com 40 crianças e adolescentes.
E, depois do império de tantas igrejas, o Pelourinho agora também tem um terreiro, a Tenda de Axé Ofá Omi. O babalorixá Luis Miguel de Oxóssi, que chegou por lá há um ano e meio não acha que o Pelourinho esteja mal. “Só está precisando de temperos para se organizar. Mais zoada para que o turista venha mais vezes". Ele diz que há pessoas na Europa interessadas em ajudálo com cursos de atabaque e "outras ocupações".
Como nossa aventura já foi para essa esfera da transcendência, nada como a sincronicidade de um encontro com o ministro da Cultura da Nigéria, Adetokunbo Kayode, quando ele reinaugurava a Casa da Nigéria, próximo ao Largo do Pelourinho, no fim do mês passado. Além de falar das semelhanças entre o Brasil e o seu país, ele lembrou que a Unesco reconheceu o Ifá (sistema oracular nigeriano) como uma das mais importantes heranças da humanidade, como ciência, sabedoria e conhecimento. "Mas, Sr. Adetokunbo Kayode, o que Ifá pensa sobre o futuro do Pelourinho?", quis saber. Como ele é ministro e não adivinho, prometeu que daqui a dois meses virá um sacerdote e, aí sim, poderemos perguntar.
A César o que é de César Pensado para diagnosticar o que pode garantir a sustentabilidade do Centro Histórico, com ênfase no Pelourinho, o Governo do Estado criou o Escritório de Referência, em outubro de 2007. Vinculado administrativamente à Secretaria de Cultura do Estado, é coordenado pela arquiteta Beatriz Lima e reúne esforços de secretarias estaduais, municipais e ministérios. Como medida emergencial, ela diz que as 64 famílias da Vila Nova Esperança, conhecida como Rocinha, já estão sendo ”remanejadas“ para o início das obras, em dezembro. A 7ª Etapa da Restauração vai garantir 103 apartamentos para os moradores da região da Praça da Sé ao Terreiro de Jesus, além de 220 apartamentos para funcionários públicos.
Ela diz que também já há plano da Secretaria de Segurança para "pontos vulneráveis", bem como parcerias para mudança da iluminação, com ”sinal verde do Governo“. Outro item que pega, literalmente: os ambulantes. Parceria com hotéis da região vai recadastrá-los e oferecer capacitação, em parceria com a Uneb e o Sebrae. ”Precisa melhorar? Não tenho dúvidas. Mas também é preciso ter perspectiva a longo prazo“, defende Beatriz. Pensando assim, a Secretaria de Cultura e a Fundação Cultural também vão se mudar para o Pelourinho em outubro. A Secretaria de Turismo e a Bahiatursa também devem despachar por lá.
Enquanto isso, o programa Pelourinho Cultural está propondo, a partir deste mês, eventos, como feiras alternativas e de antigüidades, performances, bailes e shows. Ivana Souto, diretora do programa, alega ter assumido em janeiro do ano passado com o caixa negativo em R$ 500, o que a impossibilitou orçar qualquer evento até novembro. Para ela, os Barraqueiros do Terreiro, que reclamam do fim da Terça da Bênção nos antigos moldes, agora se tornaram empreendedores e ”estão aprendendo a escrever projetos“. Só não dá, diz ela, para apoiar a Terça da Bênção do Terreiro se a música for arrocha. ”Não podemos colocar atrações sem projeção para criar um movimento fictício”. Enquanto eles se batem, dê um rolê
Enquanto o sacerdote de Ifá não vem e o Estado e a Prefeitura tentam entender o que cabe a cada um para fazer um suflê social do abacaxi histórico, que tal atentar para umas coisas bacanas que o Pelourinho tem? O abará de Elisabete Santos, filha de dona Olga, na entrada do Taboão, há 61 anos no lugar, é uma das opções. É feito à moda antiga, com camarão e pimenta no próprio bolinho. De lá, vale visitar a Casa do Benin, reformada por Lina Bo Bardi, com belíssimo acervo e até curso de barafundas. Só vendo.
Depois, para entender melhor a origem da alegria baiana (é uma hipótese, apenas), é interessante visitar o Museu de Gastronomia do Senac. Mesmo que ache o projeto fraquinho, não esqueça que você está nas Portas do Carmo, muralha construída ainda no século 16 para proteger a cidade. Quer dizer, a cidade depois que os portugueses expulsaram uma tribo que ficava ali pertinho e construíram em cima a Igreja do Carmo. Mas a muralha está lá. Emociona e indigna ao mesmo tempo.
Aí você vai subindo a ladeira, vai subindo, vai subindo, balançando a banda pra lá, a banda pra cá e chega à Fundação Casa de Jorge Amado. Quase tudo de Jorge e Zélia está no casarão azul. Eles estão produzindo coisas bacanas, e há o simpático café-teatro. Por falar em teatro, vá sem erro ao Theatro XVIII: platéia animada com ingressos a R$ 4. Arte.
Se o seu fraco são emoções fortes, entre na Rocinha, antes que interditem – mas quem viu Alumínio e sua banda de reggae viu, não vê mais. Dizem que deu um zig com uma gringa. Para comprar, contemplar ou babar, conheça as peças de Marcia Ganem no seu ateliê. Se for às terças, é sempre saudável ouvir Gerônimo na escadaria do Passo, ou mesmo a Rumpilezz na Tereza Batista, ou os dois. Ou o Olodum. Também aproveite e vá lá ao Solar Ferrão, que finalmente poderá ser visitado. Quer ir ao Recôncavo sem sair de lá? O Ponto Vital satisfaz seus desejos gastronômicos. E já que está lá, aproveite e cante Purificar o Subaé.
Sim, e tem a sorveteria La Glacier Laporte, no Cruzeiro do São Francisco, e a Cantina da Lua, no Terreiro de Jesus, onde você vê tudo o que eu disse com seus próprios olhos. Se estiver na sintonia, converse com artistas e artesãos nas ruas como Francisco Santos, que pega palha de coqueiro e faz coisas que doutores em cultura e patrimônio duvidam: um gafanhoto, uma flor. “Onde você mora?”. “No mundão“.
Quer mais: museus, igrejas? Há vários, várias, é só passar no posto e pedir um guia no Serviço de Atendimento ao Turista da Bahiatursa, que eles lhe dão a fotocópia de um mapinha. Se quiser o original, trate de enrolar a língua e imitar um sotaque qualquer, que eles dão o folheto colorido. Ê, mundão!

Vidas que valem menos

MALU FONTES Durante todo o mês de abril deste ano todas as emissoras de televisão travaram entre si uma guerra de sensacionalismo. O páreo era duro para saber qual delas usava e abusava mais de artifícios lacrimosos para explorar a morte da menina Isabela Nardoni, atirada da janela do apartamento de classe média do pai e da madrasta, em São Paulo, no dia 29 de março. O país chorou por Isabela durante semanas a fio e não houve telejornal programa de TV, capa de jornal ou revista que não tenha perdido a compostura e o limite do bom senso para disputar a atenção de um público sedento por abordagens nada sóbrias ancoradas na fabricação estratégica de comoção. No último final de semana, um novo caso de violência contra crianças cometida pela família – de novo um pai e uma madrasta - chocou os telespectadores brasileiros. PEDAÇOS DE GENTE - Dois meninos, um de 13 anos e outro de 12, foram mortos por asfixia pelo pai e a madrasta que, achando pouco, os encharcaram com combustível, incendiaram os corpos e como as chamas não os consumiram o suficiente para os transformarem em cinzas, a saída foi picá-los em pedaços com uma foice, distribuir os pedaços em sacos de lixo e espalhá-los pela cidade de Ribeirão Pires (Grande São Paulo) para serem levados pelo caminhão da coleta de lixo. Foi justamente um gari, ao perceber um pé de criança saindo de um saco, que chamou a Polícia. Embora em barbárie o caso dos meninos atinja todos os patamares do inimaginável, nem de longe se viu a comoção pública ocorrida diante da morte de Isabela. O fato é que, para a sociedade brasileira e sua rede de mídias, algumas vidas valem, sim, muito menos que outras. Há linhas nem tão imaginárias assim delimitando, nas cidades, geograficamente, socialmente e economicamente, quais as vidas que, quando perdidas, merecem destaque maior ou menor na mídia e no sentimentalismo hipócrita da população. INFERNO DOMÉSTICO – Na crueldade cometida contra os dois meninos, vale reiterar que pai e madrasta contaram com uma ajuda e tanto dos poderes públicos e, principalmente, do Conselho Tutelar da cidade. Abandonados pela mãe em 2005, os dois garotos já haviam morado quase um ano em um abrigo infantil em função dos maus tratos domésticos praticados por pai e madrasta. Menos de 24 horas antes da morte haviam fugido de casa, dormido na rua, pedido ajuda à polícia e, mesmo assim, foram devolvidos à "família" pelo Conselho Tutelar, para o qual os meninos nada estavam fazendo senão fantasiar a realidade para fugir de casa. Ou seja, uma entidade preparada para acolher crianças em risco, ao invés de protegê-las, de entender seus pedidos reiterados de socorro, os chamou de mentirosos e os devolveu para a morte. O mesmo tratamento foi dado pela família paterna dos garotos, que sabia dos maus tratos e nada fez para protegê-los do inferno doméstico. Quando crianças vítimas de maus tratos reiterados continuam a ser massacradas por suas famílias tortas, a violência é cometida por todos que tomam conhecimento disso e cruzam os braços. Quem matou Igor e João Vítor, os meninos picotados a foice em Ribeirão Pires, não foram apenas o pai e a madrasta. No crime, há o dedão do Poder Judiciário, dos vizinhos e das famílias materna e paterna. HOMOSSEXUAIS E PERITA - Enquanto isso, milhares de pessoas bem intencionadas país afora comem o pão que o diabo amassou diante da burocracia jurídica para adotar uma criança. Se o interessado for homossexual então, nem precisa usar argumentos para saber a extensão dos desafios a serem contornados e os tamanhos da chance de haver frustração. Ou seja, a burocracia entrega com toda a facilidade do mundo crianças pedindo socorro a desequilibrados capazes de matá-las sem sequer fazer uma averiguação da condição dessas pessoas para lidar com os filhos, enquanto, por outro lado, insiste em olhar torto em função de moralidades medievais para um homem ou uma mulher solteiros e, mais ainda, para um casal de homossexuais que revele interesse em adotar um filho. Contradições de um país que é radicalmente contra o aborto, mas completamente favorável à pena de morte. Os parlamentares, diante da morte de Isabela e de novo agora com a negligência imperdoável de um Conselho Tutelar, correm para pensar em leizinhas como se fosse possível ditar normas de proteção à infância como se faz pipoca em microondas, apenas para correr para a galera eleitoral. No entanto, esses mesmos parlamentares acabaram de legislar sobre adoção e fizeram questão de deixar homossexuais de fora desse direito. Diante de tanta incompetência do Estado brasileiro em proteger suas crianças da insanidade dos violentos, só resta rezar para que João Vítor e Igor sejam mais respeitados que Isabela e que não tenham suas mortes futucadas pela perita baiana Delma Gama, que saiu de seus cuidados para se meter no episódio Nardoni e passou a última semana sendo perseguida pela Polícia, pela Justiça e pelas câmeras de TV, internando-se em clínicas em contextos estranhíssimos para não depor no caso em que se meteu porque quis.