segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

A pura energia de um amor de perdição

Jurandir Freire Costa*
Christopher Hampton estréia no cinema com o pé direito. Carrington é um filme fora de série. Antes dessa primeira experiência como diretor, Hampton fez o roteiro de Ligações perigosas, de Stephen Frears, a partir de uma peça de sua autoria, baseada no clássico de Choderlos de Laclos. Já então emergia a qualidade de seu talento. Fazendo do genial moralismo de Laclos uma análise seca da vida de corte, Hampton anunciava Carrington. Ligações perigosas concluiu-se com a marquesa de Merteuil enfrentando corajosamente a humilhação que lhe fora imposta pelos pares aristocratas. Embora derrotada, ela se manteve fiel à crença na imagem do mundo como teatro das aparências, desafiando o moralismo sentimental que se tornaria historicamente vencedor. O que em Laclos era signo de maldade e ressentimento tornava-se, em Hampton, lealdade à tradição. O apelo romântico passava ao segundo plano. O enigma das Ligações perigosas era a paixão por um estilo de vida moribundo que conseguia dobrar a força do amor burguês.
Carrington leva ao paroxismo a insensatez de Merteuil. A história é desnorteante. Carrington, a personagem central, apaixona-se por Lytton com uma dedicação cega. Lytton morre e Carrington abre mão da vida como quem joga fora uma muleta sem utilidade. O episódio foi real, e parece tanto mais extravagante quanto Lytton não tinha interesse sexual por mulheres. Como entender o despropósito, o sem-sentido de um amor tão estranho? O que queria Carrington? Qual o desejo de uma mulher que não se contenta apenas sem er mãe, amante, esposa ou artista e quer amar o outro com um amor alucinado que pede somente para ser reconhecido como amor?
Para nossa mentalidade, saturada de Rousseau ou do freudismo de manual, não faltam explicações: loucura histérica; loucura a dois; masoquismo feminismo; masoquismo moral; erotismo da coisa real; gozo que não se inscreve na castração; fusão simbiótica; psicose branca; erotomania; "homossexualidade latente" etc. Talvez alguma coisa disso tudo tivesse, de fato, existido. Mas não é o que interessa a Hampton. Seu objetivo não é explicar as razões da desrazão. O importante é seguir o ritimo desse amor desmesurado.
Carrington desconcerta porque não é o outro familiar. Sua vida não tem o fascínio literário de vidas trágicas nem exemplifica o sofrimento miúdo das heroínas de folhetim. A paixão que experimenta não é feita de gestos gregos ou de soluços ao pé do ouvido. Do mesmo modo, seu amor nem é edificante nem escandaloso; é canino na constância, místico na intensidade, sereno no excesso e por isso mesmo não busca encontrar precursores ou fazer seguidores. Carrington entrega-se a ele num claro delírio, sem chance de passo atrás. O que ela sentia – ela sabia – era único, desoladoramente único. Só Lytton podia entender e receber o que ela tinha para dar.
Numa verdadeira genealogia cinematográfica da moral, Hampton observa, atônito e maravilhado, o milagre do evento irrepetível. A vida, em sua variação cega, criou um amor sutil, improvável, imprevisto e que, no entanto, aconteceu. Carrington e Lytton apegam-se um ao outro como hera em paredão. Aquele amor, mostra Hampton, é pedido e doação; alienação e individuação; zero e infinito. Perto de Lytton, Carrington sonha, pinta, ri, sai de férias, casa, descasa, faz amor e amizades; longe dele, esquece de si, pensa em negro, estanca o fluxo da alma até revê-lo e voltar a viver. Um amor tão grande, voraz e silencioso é uma afronta às paixões que aprendemos a idolatrar. Nosso imaginário amoroso é brasa dormida diante desse incêndio. Enfim, como sabemos, um dia tudo passa. Lytton não é mais; Carrington não quer mais ser. Começa o ritual de despedida. O andamento do filme muda. O tema de amor se estreita, retomado por lembranças que se atropelam. Pouco a pouco, tudo é abandonado: esperanças, desejos, lágrimas e, finalmente, palavras: “Sem ti”, diz ela, “escrevo num livro em branco, choro num quarto vazio”. Depois é só música. A câmara de Hampton fala dor, seu intérprete é Schubert. O adágio do quinteto para cordas invade a tela. Cada nota é legenda do que é visto sem poder ser dito. A doçura do cantabile é o fim da partida; seu último significante, um estampido.
No Ocidente inventamos o amor a Deus, o amor-paixao, o amor sexual etc., todos produtos de fantasias masculinas. Depois do romantismo, sobretudo, essas figuras do amor se condensaram num sentimentalismo que calou por muito tempo as vozes das mulheres.
Agora Hampton traz à luz uma inusitada manifestação do amor feminino. Essa devoção rebelde que recusa consolo ou objeto substituo; esse amor sem dívida, culpa ou temor de transgressão; esse impulso para perder-se no outro e só assim e só assim viver, não é sacrifício, padecimento, passividade ou submissão. É atividade pura; é pura energia expansiva; é puro milagre da linguagem; é puro amor nietzschiano: “A grandeza do Homem é que ele é uma ponte e não um termo; o que podemos amar no Homem é que ele é transição e perdição.” Carrington amou assim; viveu assim; morreu assim. O que pode querer uma mulher? Dentre os homens, mostra Hampton, só Lytton põde aceitar um dom de amor oferecido no feminino singular.
COSTA, Jurandir Freire. Razões públicas, emoções privadas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. pp.55-57.