domingo, 24 de fevereiro de 2008

"É preciso acabar com a cultura do erro"

Caros Amigos número 131 – Fevereiro de 2008 Certamente por ignorância, a gente "descobriu" só agora um representante do grupo de lingüistas que está virando de cabeça pra baixo o português que todos aprendemos na escola. Ele vem informar que o que vale agora é o português brasileiro, a língua que o povo fala, que as famílias falam, que nós falamos, e não aquela que pregam os manuais de redação ou os "consultórios" gramaticais dos jornais. Apostamos que a maioria de vocês, leitores que sabem ler, será surpreendida por este papo impressionantemente revelador com o autor do livro Preconceito Lingüistico (hoje na 49º edição), Marcos Bagno. entrevistadores carlos azevedo, mylton severiano, marcos zibordi, mariana santos, michaela pivetti, renato pompeu, roberto manera, rodrigo aranha, thiago domenici, vinícius souto, sérgio de souza trecho 1 THIAGO DOMENICI - Quando começou o seu interesse pela lingüística?
Desde criança me interessei por línguas em geral, pelo fenômeno da linguagem, sempre gostei de ler e de escrever, e aí, conseqüentemente, inventei que queria ser escritor.
MYLTON SEVERIANO Paulistano?
Não, mineiro, de Cataguazes. Mas desde cedo a família saiu de lá e a minha formação básica foi no Rio de Janeiro, depois Brasília, onde comecei a graduação em letras, e terminei na Universidade Federal de Pernambuco, fiz lá o mestrado em lingüística. Depois o doutorado em língua portuguesa aqui na USP. Por causa do meu histórico familiar – meu pai foi militante do Partido Comunista –, tentei achar um caminho que pudesse associar o meu interesse pela linguagem às questões sociais, antropológicas, políticas. Acabei chegando na sociolingüística, disciplina que trata dessas relações da língua e das pessoas que falam as línguas. Existe na universidade uma certa corrente que gosta de estudar a língua como se ela fosse falada por ninguém, sem levar em consideração os fenômenos sociais inevitáveis que circulam em torno do uso da língua em sociedade. trecho 2 MARCOS ZIBORDI A linguagem da Internet é necessariamente um rebaixamento da língua?
Do ponto de vista científico, a gente nunca fala que existe uma forma mais nobre ou inferior ou mais rebaixada de usar a língua. Na Internet há um uso da língua com suas características e suas peculiaridades e a gente tem que encarar dessa maneira."Não existe norma mais nobre ou inferior de usar a lingua" trecho 3 CARLOS AZEVEDO A gente ouve dizer que a língua está se vulgarizando, perdendo a sua harmonia, a sua beleza. Isso está acontecendo ou é uma visão preconceituosa?
É recorrente esse discurso de que a língua de hoje representa um estado deteriorado de uma suposta época de ouro no passado. A gente encontra isso em qualquer língua, em toda a história, desde pelo menos o século 3 a.C., e para o lingüista isso não faz o menor sentido. As línguas se transformam, mudam nem pra melhor, nem pra pior, simplesmente mudam para atender às necessidades cognitivas e interacionais de seus falantes. Porque, se quiséssemos manter a pureza do português, teríamos que falar latim, mas o latim já é uma língua derivada de outra, então, se a gente quisesse manter a pureza do latim, a gente teria que falar indo-europeu, que é uma língua falada 5.000 anos antes de Cristo.

Fidel não surpreendeu os cubanos

Jorge Garrido, de Havana Tradução de Renato Pompeu de Londres
Caros Amigos número 320 – 22 de fevereiro de 2008. Fidel Castro não surpreendeu esta madrugada os cubanos. Todos esperavam a notícia de alguma maneira. Todos sabiam, se bem que ninguém antecipou a notícia. Quem disse a eles? Ninguém. O olfato, o instinto ou acaso o fato de que conhecem muito bem seu líder. Acontece que, cinqüenta anos depois, Castro, um homem que parece imortal, decidiu não continuar sendo o governante de Cuba.
Fidel não renunciou, nunca faria isso, pensam os cubanos. Fidel disse que não se candidatará a presidente, nem aceitará que proponham sua candidatura. O que acontece enquanto isso em Cuba? Total normalidade. A frase mais corrente ou usada é: "ah, sim, já aconteceu, não te disse, era o que tinha de acontecer". O certo é que os cubanos estão há dezoito meses se preparando para esse dia, inclusive esperando sua morte. Isso estava nas possibilidades. Fidel é um mortal, embora não pareça.
Não há barulho nem comoção em Havana. Ninguém grita, tampouco ninguém chora nem soam as buzinas dos carros. Não há ambiente de pesar. Fidel continuará entre os cubanos, algo difícil de acreditar para um homem que liderou o país durante cinco décadas. Que fazer sem Fidel? Nada em especial. Cuba continua indo em frente. Por outro lado, Raúl Castro criou grandes expectativas. Que os cubanos vão ver mudanças necessárias. Medidas radicais, se não na política, certamente na economia, na produção, na administração. A eliminação de travas e proibições desnecessárias.
O que está em jogo em Cuba é a Revolução, isso todos sabem. O que está em jogo é a credibilidade na eficiência do sistema. No domingo, dia 24, se reúne o novo parlamento. Não há expectativas. Cada cubano sabe o que vai acontecer. Quem vão eleger, quem vai ser o segundo do segundo. O que os cubanos querem saber é quais serão as medidas importantes que o parlamento vai aprovar, as quais foram antecipadas por Raúl, as quais foram mencionadas por Fidel em sua carta.
Cuba, hoje, é calmaria, sossego e esperança. Ninguém grita, nem tem medo, nem chora, receia o se queixa de algo a mais, a não ser as mesmas coisas que têm sido reclamadas ultimamente. O povo já disse tudo que queria dizer nas reuniões abertas que ocorreram no fim do ano passado. Fez todas as críticas possíveis para o momento atual. Tudo agora está sobre a mesa de discussões. Os cubanos expressam, sobretudo, uma grande responsabilidade.
Bush ameaça, Miami ferve em delírio, acreditar que a Revolução vai acabar logo. A Europa encara com altivez. Os próximos acontecimentos darão a última palavra. Fidel disse: preparem-se para o pior. O caminho não será fácil. A Ilha encara seu futuro e sabe que a primeira coisa que tem de fazer é defender-se. Defender-se de todos os demônios que apareçam em seu caminho.
Jorge Garrido é jornalista cubano.

Capitalismo e ideologia

Antonio Cicero
Não se pode superar o capitalismo antes de garantir o direito a livre expressão e autonomia
NO MEU último artigo, chamei atenção para uma curiosa analogia entre o feudalismo e o "socialismo real", tal como este existiu, por exemplo, na União Soviética. No modo de produção feudal, era fundamental para o próprio funcionamento da economia que uma única ideologia, isto é, o catolicismo, fosse compartilhada por praticamente toda a sociedade. Por isso, as ideologias desviantes ou hostis eram perseguidas.
A principal instituição que devia definir, estabelecer, divulgar e impor essa religião era, como se sabe, a Igreja. Ora, também no modo de produção socialista, era fundamental para o próprio funcionamento da economia que uma única ideologia, isto é, o marxismo-leninismo, também acabasse por ser adotada por praticamente toda a sociedade. Por isso, as ideologias desviantes ou hostis eram perseguidas.
A principal instituição que devia definir, estabelecer, divulgar e impor essa verdadeira religião laica era, como se sabe, o Partido Comunista, por meio do Estado, que monopolizava todas as instituições de ensino e de propaganda. Observei também que o modo de produção capitalista, ao contrário, é capaz de funcionar sem necessidade de que nenhuma ideologia particular seja compartilhada pela maior parte da sociedade. Sendo assim, ele é perfeitamente compatível com a liberdade de expressão, inclusive a liberdade de imprensa.
Pois bem, essas simples constatações - sobretudo a última - provocaram vários leitores a enviarem mensagens indignadas, principalmente ao meu e-mail e ao meu blog. Entretanto, todas me acusam de ter dito coisas que eu não disse.
A indignação é, sem dúvida, pelo que eu realmente escrevi e, sem dúvida, exatamente pelo fato de ser incontestável; mas, já que não conseguiam contestá-lo, os ataques dos insatisfeitos se concentraram no que não escrevi nem penso. É o que se chama má-fé. Acusaram-me, por exemplo, de ter dito que não há ideologia capitalista ou burguesa. Ora, penso, ao contrário, que há inúmeras ideologias burguesas. O que afirmei foi que nenhuma ideologia particular tem que ser compartilhada pela maior parte da sociedade para que a economia capitalista funcione. Trata-se de algo evidente, que é suscetível de ser empiricamente verificado em inúmeros países capitalistas, inclusive no Brasil.
Quem poderia negar que o Brasil (ou os Estados Unidos, ou a França...) é um país capitalista? Quem poderia negar que há, no Brasil (ou nesses outros países), liberdade de expressão? Essa característica do capitalismo pode ser explicada pelo fato de que as motivações que orientam as ações dos seus agentes econômicos - em particular, dos capitalistas (por exemplo, o lucro e a ampliação do capital) e dos operários (por exemplo, o salário) - são basicamente materiais, pouco importando ao funcionamento da economia que cada indivíduo tenha ideologias, filosofias, religiões, superstições, gostos, hábitos, vícios etc. diferentes de cada um dos outros indivíduos.
Segundo a famosa fórmula da "Fábula das Abelhas", de Mandeville (século 18), vícios privados (por exemplo, a cobiça) são capazes de produzir virtudes públicas (por exemplo, a prosperidade nacional). É evidente que tal modo de pensar jamais poderia funcionar numa economia socialista planejada, em que, tendo em vista a "construção do socialismo (ou do comunismo)", torna-se necessário exaltar a virtude do altruísmo e a submissão do interesse individual ao coletivo.
Que admira, se, em tal situação, quem pensar por conta própria já esteja incorrendo no desvio do "individualismo pequeno-burguês"? Para evitá-lo, torna-se necessária a "reeducação" de todos segundo um único modelo: para isso, apela-se, por exemplo, às chamadas "revoluções culturais".Lin Piao, um dos líderes da Revolução Cultural Chinesa, explicava que ela tinha como meta "eliminar a ideologia burguesa, estabelecer a ideologia proletária, remodelar as almas do povo, extirpar o revisionismo e consolidar e desenvolver o sistema socialista". É o totalitarismo em estado puro. Estou longe de achar o capitalismo perfeito. Mas não se pode tentar superar os seus problemas sem, ao mesmo tempo, preservar, ampliar, universalizar e consolidar a sociedade aberta, o direito à livre expressão de pensamento, a maximização da liberdade individual, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc.
Vimos que o marxismo-leninismo é, em princípio e de fato, incompatível com essa exigência. Resta-nos ser radicalmente reformistas.

Horta comunitária

Um mar de lama e um bigodão fora do lugar

Malu Fontes
A Tarde, domingo, 24 de fevereiro de 2008 TELEANÁLISE
Até bem pouco tempo, quaisquer conversas sobre a necessidade de preservação do meio ambiente, consciência ecológica, rigor na seleção dos alimentos consumidos e preocupação com o lixo produzido nas cidades eram, quase sempre, classificadas como coisas de eco-chatos. A poluição, a devastação ambiental e a toxidade dos alimentos têm produzido tantas conseqüências nefastas e letais na vida das pessoas em todo o mundo que o tema se tornou obrigatório e os velhos eco-chatos hoje já são vistos como ingênuos, pois os perigos para os quais alertavam se revelaram, hoje, muito mais severos que aqueles previstos lá atrás. Ou seja, as coisas hoje são mais feias do que pareciam há 20 anos.
Viu-se nos telejornais recentemente que não basta entupir os brasileiros com os hormônios aplicados nos frangos para que estes cresçam, engordem e sejam abatidos em tempo recorde. Além de lesar o corpo, o setor agora lesa o bolso, injetando ampolas e ampolas de água nos frangos que, congelados, chegam a pesar o dobro. E já que valem pelo que pesam, o consumidor paga a conta e leva blocos de gelo para casa no lugar do suposto e inofensivo frango. Viu-se bois vivos sendo empurrados a toques sucessivos e intensos de choques elétricos e mortos em condições sanitárias intoleráveis. No primeiro caso, o bicho libera na carne toxinas de toda ordem. No segundo, bactérias terão como destino, via o bife que se come em casa, o adoecimento dos consumidores.
CARNE HUMANA NO CARDÁPIO - A TV exibe à exaustão casos e casos ilustrativos da revolta da natureza diante do mau uso feito dela pelo homem ou pelo fenômeno que atende vagamente pelo nome de progresso. O mar invade o que lhe foi roubado em áreas nobres do litoral pernambucano por edifícios de alto padrão construídos literalmente na areia; tubarões, expulsos de seu habitat natural para a construção de um porto, também em Pernambuco, passam a incluir no cardápio carne humana, sobretudo pernas e braços e surfistas e banhistas desavisados; vez ou outra a Amazônia e o Pantanal experimentam secas difíceis de parecerem críveis e, na última semana, um fenômeno visualmente surreal aconteceu no litoral do Rio Grande do Sul.
Na Praia do Cassino, a mais de 300 Km de Porto Alegre, o mar literalmente vomitou na areia tudo aquilo que não era seu e os desmatamentos a quilômetros e quilômetros dali que empurraram águas profundas adentro através dos rios. O mar recuou nada menos que 300 metros e passou a despejar em cinco quilômetros de areia ondas de lama escura, arrancada, segundo os biólogos, do fundo do próprio mar, e originada de desmatamentos e destruição de matas ciliares à beira dos rios em diversos pontos do estado. A imprensa, sobretudo a televisiva, para quem uma imagem de extensões de areia cobertas de lama escura teria uma importância educativa indescritível sobre as reações da natureza, cobriram mal e porcamente o fenômeno, com exceção do Jornal da Globo, cujas imagens dos pescadores na praia atolados com lama até o pescoço eram mais assustadoras que quaisquer imagens do cinemão hollywoodiano sobre catástrofes.
BIG BROTHER - As cenas televisivas mais fortes da semana, no entanto, se deram no território da política. Para quem gosta e vive de informação, é um privilégio acompanhar pela TV uma das curvas mais significativas da história: a exibição e leitura da carta de renúncia do polêmico Fidel Castro ao governo de Cuba. Para uns, o último revolucionário do Século XX. Para outros, um ditador sanguinário que executava no 'paredón' os seus opositores (para quem não sabe, daí vem a origem do kitsch paredão do Big Brother – sim, cultura inútil também é fundamental). O fato é que as ações e a trajetória de Fidel são um capítulo fundamental do último século, sobretudo pela sua ousadia, de sozinho (desde o desfazimento da URSS), enfrentar o império mais poderoso do mundo (EUA) e seus embargos econômicos.
A outra imagem emblemática da semana mostrou, mais uma vez, que jamais se deve acreditar em falas de homens públicos. Trata-se das últimas declarações do agora ex-secretário de Segurança Pública da Bahia, Paulo Bezerra, na última terça-feira a uma emissora de TV, quando ainda respondia pelo posto. Questionado sobre os arrastões na Estrada do Coco e na via Cia-Aeroporto e sobre o crescimento assombroso dos índices de assassinato em Salvador nos últimos meses (23 assassinatos em apenas 40h foram noticiados na última segunda-feira), o (então) secretário foi incisivo. BARBEIRO - Bezerra afirmou que a violência ocorrida na capital baiana não tinha nada demais se comparada com a do resto do Brasil. Disse literalmente, nestes termos, que tudo estava absolutamente sob controle na segurança pública da Bahia. Não estava. A não ser que estivesse se referindo ao controle assumido pela marginalidade. Tanto não era verdade o que dizia que caiu no mesmo dia. Melhor assim, pois a população tem mais uma chance de pensar que as coisas ainda podem melhorar e o secretário terá na agenda tempo livre para passar no barbeiro/cabeleireiro e dar um jeito naquela cabeleira de corte vencido há tempos e naquele bigodão que lhe dá um ar de um xerife texano fora de lugar.